Em parceria com a Chilldhood Brasil,
conversamos com pedagogas especialistas no assunto para dar luz ao tema da
violência sexual infantil, e empoderar não só as famílias, mas também as
crianças.
A
máxima “meu corpo, minhas regras”, comumente associada às causas feministas,
pode e deve ser aplicado ao universo da criança. É só pensar em quantas vezes
em um só dia as crianças são submetidas a algum tipo de proximidade corporal
com pessoas com quem têm pouca ou nenhuma intimidade. Por isso, dar luz a este
assunto é de importância crucial para empoderar as famílias e as próprias
crianças contra a violência. Em parceria com a Childhood Brasil,
conversamos com especialistas no assunto.
Ainda que de forma inocente e desprovida de
qualquer má intenção, é comum que desconhecidos se aproximem das crianças,
oferecendo beijos, abraços e carinhos. Porém, é preciso ficar atento ao que
esses gestos podem vir a significar.
Um relatório da Childhood sobre violência
sexual na infância publicado em setembro de 2016 revela que, entre 2012 e 2015,
foram registrados mais de 157 mil casos de violência sexual (que engloba tanto
a exploração quanto o abuso) de crianças e adolescentes. Isso significa que, a
cada uma hora, há pelo menos 4 casos de uma criança ou adolescente sexualmente
violentada no Brasil.
A diferença entre carinho e violência se resume em
uma palavra: consentimento
Isso quer
dizer que se a criança permitir ser tocada e abraçada, está tudo bem? Nem
sempre. Outra questão tem importância crucial aqui: o conhecimento sobre os
limites de seu corpo. A criança precisa entender o que é afeto e o que é
violência para poder se defender, principalmente para aprender a dizer ‘não’ e
saber detectar atitudes abusivas de pessoas próximas.
E como
fazer isso? De acordo com os especialistas, a saída está no diálogo aberto. Ou
seja, se o sexo ainda é um tabu na sociedade, é preciso tirar essa sombra pelo
menos dentro de casa e na escola.
Caroline
Arcari, presidente do Instituto CORES, é pedagoga e educadora sexual. Para ela,
é preciso quebrar o mito de que educação sexual erotiza a criança antes do
tempo: trata-se, ao contrário, de permitir a ela experenciar a infância de
forma plena.
“A educação sexual é a forma mais eficaz de prevenção da violência sexual. A Organização Mundial de Saúde já comprovou, ao analisar mais de mil relatórios sobre os efeitos da educação sexual no comportamento de jovens, que quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam a vida sexual. Quanto menos informação, mais precocemente se inicia a vida sexual”, defende.
“A educação sexual é a forma mais eficaz de prevenção da violência sexual. A Organização Mundial de Saúde já comprovou, ao analisar mais de mil relatórios sobre os efeitos da educação sexual no comportamento de jovens, que quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam a vida sexual. Quanto menos informação, mais precocemente se inicia a vida sexual”, defende.
A pedagoga idealizou, em 2015, o livro “Pipo e Fifi”, que explica às crianças de forma
lúdica e com texto acessível as diferenças entre carinho e abuso sexual, e
alerta também para o fato de que na maioria das vezes o abuso parte de alguém
que a criança conhece e em que ela confia.
“Precisamos
superar o mito de que o abuso sexual acontece com o uso da força física, de
forma agressiva e pontual, ele pode acontecer mesmo com o consentimento da
criança ou do adolescente. Aliás, na maioria das vezes, o consentimento
acontece, já que o adulto que comete o abuso o faz por meio da sedução, do
convencimento, das trocas, das ameaças e dos toques abusivos disfarçados de
afeto. Então, a criança permite (consente) a violência sexual, seja por medo,
confusão, imaturidade e até por confiar e/ou amar o agressor (quando este é da
família)”.
“Pipo e Fifi” é uma obra internacionalmente
premiada, que ensina as crianças a identificar comportamentos abusivos, além de
apontar caminhos para a busca de ajuda em caso de violência sexual. Traduzido
para quatro idiomas, com mais de 100 mil cópias distribuídas gratuitamente, o
livro está disponível para leitura no site do projeto. Lá, há também outros
materiais para download gratuito, para instrumentalizar pais e educadores.
Considerando que a
questão nem sempre é clara para quem está no dia a dia com as crianças, é
importante não perder de vista que pequenos gestos podem ressignificar o modo
como a criança percebe o seu corpo. Caroline aponta algumas alternativas para
empoderar os pequenos sobre o abuso:
A possibilidade de escolha
“É importante que as crianças sintam que podem
fazer escolhas em coisas simples, dentro de limites estabelecidos pelos pais:
roupas, atividades, um passeio, um programa de TV”, sugere.
Não forçar a criança a
abraçar ninguém
“Oferecer alternativas para a criança se
relacionar com outras pessoas, sejam parentes ou não, é uma forma de não forçar
o contato físico e ainda ensiná-la a ser cortês e simpática”, indica a
pedagoga.
Seguir as próprias regras de
consentimento
“Os adultos são um modelo de comportamento para
as crianças. De nada adianta seguir os passos acima se os próprios adultos não
pedem permissão para tocar as crianças, se ignoram a palavra “não” e “pare”, ou
se forçam contato físico das crianças com outros adultos. Consentimento se
ensina pelo diálogo, mas também pelo exemplo dos adultos”.
O Catraquinha conversou também com a psicóloga
Isabel Gervitz, do Toda Criança Pode Aprender,
plataforma de conteúdos e referências sobre educação infantil que desenvolveu
uma série para empoderar pais e educadores sobre sexualidade infantil, dividida
em três partes – clique aqui para ler a primeira.
O limite entre afeto
demonstrado de forma física e abuso sexual pode ser muito tênue. Qual o fator
determinante para separar uma coisa da outra?
Para a criança, o afeto está muito ligado às
sensações físicas, pois ela se relaciona com o mundo de forma mais concreta do
que os adultos. A maioria de seus conhecimentos vem do que ela capta através
dos sentidos e a abstração é conquistada gradualmente. Justamente por isso,
para ela o aspecto físico relacional é importante. Cabe muito mais ao adulto do
que à criança identificar o tipo de interação física adequado.
Alguns questionamentos podem ajudar a pensar
sobre isso: O contato que está ocorrendo é algo que precisa ser mantido em
segredo ou é socialmente aceitável? A criança demonstra reações emocionais
ou físicas exageradas frente a essa interação? Há algum tipo de angústia
que acompanha o contato físico?
Sabemos que crianças são indivíduos muitas vezes com poucas
escolhas, uma vez que são os adultos que definem por elas o que vão comer,
vestir, quais lugares vão frequentar. No caso das relações interpessoais, como
isso se dá?
O grau de autonomia da criança é variável de
acordo com sua idade e com a as características particulares da relação com os
adultos responsáveis por ela. No caso das relações interpessoais, isso é
semelhante.
É importante estabelecer uma relação de
confiança com a criança, permitindo que ela faça suas escolhas e tenha
autonomia. Mas também é fundamental acompanhá-la, procurando conhecer as
pessoas com quem ela interage e conversando com ela sobre suas atividades
e sobre como se relaciona com essas pessoas (o que fazem juntas? Como
brincam ou de quê? etc).
Podemos e devemos mediar as
relações da criança com as outras pessoas? Como fazer isso sem ferir a individualidade
da criança?
Não se pode conceder à criança o mesmo grau de
autonomia que seria dado a um adulto, pois ela ainda não tem como arcar com as
responsabilidades que isso acarreta e nem é esperado que o faça.
Também não tem discernimento para decidir até
que ponto sua relação com outras pessoas é saudável, quais os limites que
precisa ter etc. A infância é um período de experimentação e de exploração e,
para que isso ocorra, é preciso que haja algum adulto que zele
pela segurança da criança.
Considerando que o abuso na
maior parte das vezes parte de pessoas próximas da criança e da família, qual o
melhor caminho para empoderar a criança em relação ao contato físico sem
consentimento?
É possível empoderar a criança, mas há limites
consideráveis nesse empoderamento. De forma geral, quem tem a capacidade de
prevenir ou mesmo interromper uma situação de abuso é o adulto responsável pela
criança.
De qualquer maneira, é possível conversar com a
criança sobre a importância dos cuidados com seu próprio corpo, indicando que
ela pode recusar alguns tipos de carinho ou contato que não tenha vontade de
ter e mostrando que algumas partes do corpo são muito íntimas e não devem ser
tocadas por qualquer pessoa. Esse diálogo cabe quando o adulto possui uma
relação de vínculo e confiança com a criança e precisa ser delicado e adequado
à linguagem infantil, caso contrário não fará sentido para ela, podendo
assustá-la e angustiá-la.
Outra possibilidade é explicar à criança que
nem sempre os outros sabem que a estão machucando ou tendo um tipo de contato
físico que ela não gosta e que nessas ocasiões é importante que ela diga algo,
colocando seu limite ou pedindo ajuda.
A questão do abuso sexual faz parte de um guarda-chuva de assuntos
ainda tratados como tabus em muitos âmbitos, como o sexo e a relação com o
corpo. Como naturalizar o assunto, tanto na escola quanto em casa?
O cuidado com o próprio corpo, bem como a
auto-observação sobre as reações físicas e emocionais que o contato com outras
pessoas gera são extremamente importantes. Na verdade, o que é mais efetivo
para que a criança seja capaz de cuidar de si mesma é um convívio diário com
essa questão. Isso é oportunizado em muitos momentos do cotidiano, como em
situações de higiene, nas relações com outras crianças e com adultos, ao
relaxar na hora de dormir, ao realizar atividades físicas como correr, nadar,
dançar, pular.
Vivenciar diversas sensações físicas e tentar
percebê-las e descrevê-las pode promover uma intimidade maior da criança com
seu próprio corpo. Ao se expressar corporalmente, ela irá perceber gradualmente
seus limites, os contatos que gosta e os que não gosta, tornando-se muito mais
apta a reparar quando algo não vai bem. Poder falar sobre as reações e
sensações corporais com os adultos de referência também é uma forma de manter o
canal de diálogo aberto, permitindo que ela peça ajuda quando necessário.
CHILDHOOD BRASIL E CATRAQUINHA
PELO FIM DA VIOLÊNCIA SEXUAL
Criada em 1999, a Childhood Brasil é uma organização social brasileira que
trabalha para influenciar a agenda de proteção da infância e adolescência no
país. A organização tem o papel de garantir que os assuntos relacionados ao
abuso e a exploração sexual sejam pauta de políticas públicas e privadas
oferecendo informação, soluções e estratégias para os diferentes setores da
sociedade. Por entender que este é um tema fundamental para o empoderamento das
famílias, o Catraquinha se juntou à organização para
luz a essa discussão.
FONTE: CATRAQUINHA
https://catraquinha.catracalivre.com.br/geral/defender/indicacao/abuso-sexual-nao-acontece-so-com-forca-fisica-diz-pedagoga/