sexta-feira, 7 de junho de 2013

NAS AMARRAS DO MEDO

Pesquisa conduzida com profissionais da rede pública de saúde mostra que mais da metade deles não notifica casos de violência infantil.


De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, todo profissional de saúde é obrigado a notificar os casos de violência, mesmo que seja uma leve suspeita.
Percentual inquietante: 68% dos profissionais de saúde não notificam casos de violência a menores, contrariando o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente. Apesar de não precisarem se identificar ou sequer comprovar a suspeita para fazer uma denúncia, a maioria libera as crianças agredidas sem qualquer intervenção.
É o que mostra pesquisa feita com 107 profissionais da rede pública de saúde de Olinda (PE). Dos 86% que já suspeitaram de violênciapelo menos uma vez, somente 36,4% notificaram. A pergunta central é por quê?
Foi a partir dessa indagação que o cirurgião-dentista João Luís da Silva, da Universidade Federal de Pernambuco, realizou o estudo, baseado em entrevistas a cirurgiões-dentistas, médicos e enfermeiros da Estratégia Saúde da Família (ESF) de Olinda.
Entre outubro de 2011 e fevereiro de 2012, ele endereçou 50 questões (por meio de questionário e entrevista) aos profissionais, não só sobre suas suspeitas e notificações, mas também se já haviam sido vítimas de violência em alguma época da vida, participado de discussões sobre o tema ou feito cursos em saúde coletiva.
O pesquisador relata que os profissionais de saúde reconhecem a enorme importância da notificação, mas se rendem ao medo de sofrer consequências. “Represálias e ameaças do agressor, fora e dentro do ambiente de trabalho, são as principais amarras dos profissionais”, observa. Ele constatou, no entanto, que aqueles que já fizeram uma denúncia não foram procurados depois. 
 Além do medo, foram apontados outros fatores que impedem a ação. “A falta de articulação dos postos de saúde com outros setores responsáveis, a burocracia do processo e a falta de retorno por parte desses setores foram queixas presentes nas entrevistas”, conta Silva.

SAÚDE ALÉM DA CLÍNICA


O interesse do pesquisador pelo tema surgiu de sua própria experiência. Quando cursava o último período da graduação em odontologia, atendeu no estágio um garoto de oito anos com traumatismo dentário. O menino disse que tinha se machucado ao fugir de um ataque violento da mãe, que o espancava frequentemente. A mãe, porém, alegava que tinha sido um acidente.
“Fiquei muito perturbado com a situação e perguntei à minha orientadora o que poderia fazer pela criança, além de tratar a lesão. Esperava algum direcionamento para lidar também com a questão da violência”, conta Silva. “Mas ela disse que não se podia fazer mais nada, que aquilo já não era da nossa competência. Essa situação me inquietou muito.”
Silva começou aí a pesquisar a legislação existente sobre como os profissionais de saúde devem agir diante de um caso de violência contra menores. “Descobri que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, todo profissional de saúde é obrigado a notificar os casos de violência, mesmo que seja uma leve suspeita”, diz.
Durante seu mestrado, resolveu ouvir os profissionais de saúde para saber como agem frente a essa situação. “Quis lhes dar voz para que os gestores de saúde possam conhecer e atuar sobre as dificuldades encontradas quando eles decidem notificar situações de violência, melhorando assim o cuidado geral”, justifica.

DIRETRIZES DE NOTIFICAÇÃO


Muitos profissionais de saúde que testemunharam violência contra crianças não sabem como nem a quem fazer a denúncia. Segundo Silva, o tema da violência não é abordado na graduação, mas só na pós-graduação em saúde coletiva ou em oficinas promovidas por alguns serviços de saúde. “A cidade de Olinda já faz esse trabalho de sensibilização com os profissionais da rede pública. Por isso escolhi estudá-los”, diz o pesquisador.
As perguntas foram baseadas na ficha de notificação elaborada pelo Ministério da Saúde e distribuída a todos os postos da rede pública do país. No formulário, o profissional encarregado de notificar preenche o tipo de violência sob suspeita, o meio de agressão, o tipo de lesão causada e os dados pessoais do paciente.
Dali a ficha segue para a Secretaria Municipal de Saúde e para o Conselho Tutelar, que encaminhará o menor para outras instâncias (hospitais, psicólogos, delegacias ou casas de abrigo). A denúncia também segue para as Delegacias de Proteção da Criança e do Adolescente, que investigarão o caso.
O profissional não precisa se identificar, mas a Secretaria de Saúde exige o carimbo e o código da unidade de saúde, o que inibe a maioria deles, já que temem represálias também aos colegas e agentes comunitários que vivem nas áreas atendidas.
Apesar das grandes dificuldades que o sistema ainda precisa enfrentar, a obrigatoriedade da notificação reconhece a violência como um problema de saúde pública. Silva acredita que a sensibilização em relação a essa questão amplia a visão do profissional de saúde, que não deve ser apenas clínica. “Mas há de se analisar se é prudente e justo obrigar a notificação num cenário onde muitas vezes não há amparo e auxílio aos profissionais”, pondera o autor.

Camille Dornelles
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 303 (maio de 2013).


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