Pesquisa conduzida com profissionais da
rede pública de saúde mostra que mais da metade deles não notifica casos de
violência infantil.
De acordo com o
Estatuto da Criança e do Adolescente, todo profissional de saúde é obrigado a
notificar os casos de violência, mesmo que seja uma leve suspeita.
Percentual inquietante: 68% dos
profissionais de saúde não notificam casos de violência a menores, contrariando
o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Apesar de não precisarem se identificar ou sequer comprovar a suspeita para
fazer uma denúncia, a maioria libera as crianças agredidas sem qualquer
intervenção.
É o que mostra
pesquisa feita com 107 profissionais da rede pública de saúde de Olinda (PE).
Dos 86% que já suspeitaram de violênciapelo menos uma vez, somente 36,4%
notificaram. A pergunta central é por quê?
Foi a partir dessa
indagação que o cirurgião-dentista João Luís da Silva, da Universidade Federal
de Pernambuco, realizou o estudo, baseado em entrevistas a
cirurgiões-dentistas, médicos e enfermeiros da Estratégia Saúde da Família
(ESF) de Olinda.
Entre outubro de 2011
e fevereiro de 2012, ele endereçou 50 questões (por meio de questionário e
entrevista) aos profissionais, não só sobre suas suspeitas e notificações, mas
também se já haviam sido vítimas de violência em alguma época da vida,
participado de discussões sobre o tema ou feito cursos em saúde coletiva.
O pesquisador relata
que os profissionais de saúde reconhecem a enorme importância da notificação,
mas se rendem ao medo de sofrer consequências. “Represálias e ameaças do
agressor, fora e dentro do ambiente de trabalho, são as principais amarras dos
profissionais”, observa. Ele constatou, no entanto, que aqueles que já fizeram
uma denúncia não foram procurados depois.
Além do medo, foram
apontados outros fatores que impedem a ação. “A falta de articulação dos postos
de saúde com outros setores responsáveis, a burocracia do processo e a falta de
retorno por parte desses setores foram queixas presentes nas entrevistas”,
conta Silva.
SAÚDE ALÉM DA CLÍNICA
O interesse do pesquisador
pelo tema surgiu de sua própria experiência. Quando cursava o último período da
graduação em odontologia, atendeu no estágio um garoto de oito anos com
traumatismo dentário. O menino disse que tinha se machucado ao fugir de um
ataque violento da mãe, que o espancava frequentemente. A mãe, porém, alegava
que tinha sido um acidente.
“Fiquei muito
perturbado com a situação e perguntei à minha orientadora o que poderia fazer
pela criança, além de tratar a lesão. Esperava algum direcionamento para lidar
também com a questão da violência”, conta Silva. “Mas ela disse que não se
podia fazer mais nada, que aquilo já não era da nossa competência. Essa
situação me inquietou muito.”
Silva começou aí a pesquisar a
legislação existente sobre como os profissionais de saúde devem agir diante de
um caso de violência contra menores. “Descobri que pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente, todo profissional de saúde é obrigado a notificar os casos de
violência, mesmo que seja uma leve suspeita”, diz.
Durante
seu mestrado, resolveu ouvir os profissionais de saúde para saber como agem
frente a essa situação. “Quis lhes dar voz para que os gestores de saúde possam
conhecer e atuar sobre as dificuldades encontradas quando eles decidem
notificar situações de violência, melhorando assim o cuidado geral”, justifica.
DIRETRIZES DE NOTIFICAÇÃO
Muitos profissionais
de saúde que testemunharam violência contra crianças não sabem como nem a quem
fazer a denúncia. Segundo Silva, o tema da violência não é abordado na
graduação, mas só na pós-graduação em saúde coletiva ou em oficinas promovidas
por alguns serviços de saúde. “A cidade de Olinda já faz esse trabalho de
sensibilização com os profissionais da rede pública. Por isso escolhi
estudá-los”, diz o pesquisador.
As perguntas foram
baseadas na ficha de notificação elaborada pelo Ministério da Saúde e
distribuída a todos os postos da rede pública do país. No formulário, o
profissional encarregado de notificar preenche o tipo de violência sob
suspeita, o meio de agressão, o tipo de lesão causada e os dados pessoais do
paciente.
Dali a ficha segue
para a Secretaria Municipal de Saúde e para o Conselho Tutelar, que encaminhará
o menor para outras instâncias (hospitais, psicólogos, delegacias ou casas de
abrigo). A denúncia também segue para as Delegacias de Proteção da Criança e do
Adolescente, que investigarão o caso.
O profissional não precisa se
identificar, mas a Secretaria de Saúde exige o carimbo e o código da unidade de
saúde, o que inibe a maioria deles, já que temem represálias também aos colegas
e agentes comunitários que vivem nas áreas atendidas.
Apesar das grandes
dificuldades que o sistema ainda precisa enfrentar, a obrigatoriedade da
notificação reconhece a violência como um problema de saúde pública. Silva
acredita que a sensibilização em relação a essa questão amplia a visão do
profissional de saúde, que não deve ser apenas clínica. “Mas há de se analisar
se é prudente e justo obrigar a notificação num cenário onde muitas vezes não
há amparo e auxílio aos profissionais”, pondera o autor.
Camille Dornelles
Ciência Hoje/ RJ
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