Contudo, como mulher, mãe de menina e ativista pelos direitos da
infância, não poderia me omitir. Poderia parecer uma aceitação tácita dos
fatos, e eu não aceito os fatos. Não podemos mais fechar os olhos para a falta
de valores e de limites da sociedade de consumo contemporânea – em
que tudo, até as meninas, transformam-se em mercadoria.
A campanha #meuprimeiroassedio, mobilização contra a cultura do estupro
criada pelo coletivo feminista, trouxe à tona pelas redes sociais duros relatos
de milhares de mulheres, hoje já adultas, ainda marcadas pelos assédios e
abusos sofridos desde a mais tenra idade, não só por desconhecidos, mas por
homens bem próximos.
Não é novidade que estamos sendo assaltados pela cultura do estupro e da
pedofilia. Basta lembrar que “novinha” é o termo mais usado na busca em sites
de pornografia no Brasil. O mesmo acontece com “teen” em diversos países do
mundo, demonstrando que acontecimentos como o do último mês, na estreia do
programa Masterchef, são mais comuns do que gostaríamos de pensar. Outros dados
mais antigos da WCF (World Childhood Foundation), mostram que no Brasil existem
mais de 241 rotas de tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração
sexual e 1.820 pontos de exploração sexual infantil nas rodovias federais. De
acordo com o Disque 100, serviço que recebe e encaminha denúncias desse tipo de
todo o Brasil, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,
em 2012 foram registradas 37.726
denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em todo o Brasil.
Em 2013, esse número caiu para 31.895.
Seria talvez desnecessário relembrar que, segundo a lei, qualquer tipo
de relação de natureza sexual com crianças é estupro e, portanto, crime. Uma
criança, pela peculiar fase de desenvolvimento psíquico, cognitivo e emocional
em que se encontra, não pode ter relação sexual consensual. Por ser criança é
vulnerável, sem condições de tomar esse tipo de decisão. Sendo assim, que fique
claro: sexo com menores de 14 anos é crime.
Ocorre que, em nossa cultura de consumo, a pedofilia ou estupro não são
problemas isolados, de homens doentes. São também fruto do imaginário de uma
sociedade que aceita a venda de sutiãs com bojo para meninas de 8 anos e
investe milhões em publicidade de maquiagem para meninas de 6 anos,
erotizando-as precocemente na tentativa de transformá-las em mulheres objeto,
para vender.
Parece natural, hoje, crianças com milhões de seguidores em shows ou nas
redes dançando funk com trejeitos sensuais e letras eróticas, como o caso da Mc
Melody, ou meninas de 11 anos seminuas em ensaios fotográficos de moda – como
apontei em artigo sobre
o Caso Vogue Kids, levado ao Ministério Público e cuja decisão judicial tirou a
revista de circulação nacional em menos de 48 horas. Outro dado igualmente
importante é: 65% das meninas declararam usar o dinheiro da exploração sexual
para comprar celular, tênis, roupa o que demonstra que a exploração sexual não
se restringe a bolsões de pobreza e se manifesta de diversas formas, assim como
o desejo de consumo não é despertado apenas naqueles investidos de poder
aquisitivo segundo pesquisa da WCF.
Reforço o papel da cultura de consumo para afirmar, mais uma vez, que a
culpa ou responsabilidade pelos abusos sofridos não é das meninas. Elas são
vitimadas pelo assédio – não só de homens, mas de toda uma cultura que lucra
com seu corpo. Vítimas de uma sociedade que não as protege – antes, só as
expõe. É comum hoje vermos os fatos distorcidos em discursos tipo “as meninas
já têm sexualidade de mulher adulta ou usam saias e shorts provocativos para atrair a
atenção masculina”. Discurso esse que as responsabiliza pelo que sofreram e
reforça a cultura do estupro, na qual o agressor torna-se vítima, e não autor
de um crime que não poderia ficar impune.
Outro ponto que não pode ficar fora desse debate é a responsabilidade
enorme que os pais têm, hoje, ao assumir o papel de educadores em tempos de
apelo ao consumo em mídias e redes sociais, como já debati em artigos anteriores
(aqui e aqui).
Os velhos conselhos passados de mães para filhas – “não aceite balas de
estranhos, siga em frente ao ouvir assobios na sua direção, nunca pegue carona”
– caem por terra diante da complexidade das relações experimentadas na rede,
onde crianças e adolescentes acessam, sem filtro, o mundo adulto e seus
perigos.
A partir do momento em que burlamos o limite de idade para criar canais
no Youtube ou contas no Instagram e Facebook para nossos filhos, estamos
consentindo em abrir as portas para o desconhecido. Essa é nossa
responsabilidade enquanto pais, além, é claro, de educar nossas meninas – e
meninos também – para se proteger, não tolerar abusos e a denunciá-los quando
acontecerem. Já mães e pais de meninos têm o dever de educá-los com outro olhar
para o sexo oposto, mais empático, protetor e respeitoso.
Quando deformamos a imagem de uma criança, como no episódio de
Valentina, estamos colocando em risco seus direitos. Em 20 de novembro
comemora-se a Convenção dos Direitos das Crianças e Adolescentes da ONU, que
não tem saído do papel. É tempo de olharmos para Valentina e tantas outras
crianças como seres em formação que são sujeitos de direitos. Porque
destituídas de direitos, são vítimas. Infelizmente, muitas vezes dentro de suas
próprias casas, no convívio familiar ou ambiente escolar.
Façamos valer o artigo 227 da nossa Constituição Federal, que afirma ser
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Espero que minha
menina possa ver florescer no Brasil uma cultura mais humana, feminina e
respeitosa para ela e todas as meninas e meninos deste país.
Por Lais Fontenelle
Fonte: Outras Palavras
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