Para muitos, a ideia de um
lar com crianças brincando na varanda, sons de gritinhos infantis de alegria e
risadas advindas de cócegas é uma recordação de um tempo de plenitude,
segurança e amor vivido na infância, mas que, para outros, não passa da descrição
de cenas de filmes ou ações que acontecem apenas na “casa ao lado”.
Conviver com uma mente que, ao relembrar a infância, remete
apenas a uma casa, sentimentos de vazio, medo, culpa, insegurança e abandono
afetivo é a realidade de muitos adultos que sofreram silenciosamente a
violência sexual, moral, física e/ou psicológica quando pequenos.
É na infância
que formamos a visão de nós mesmos. Também é na infância que construímos algo
tão grande – a autoestima. Quando ainda somos pequenininhos, instalamos os fundamentos
do que existe de mais profundo no ser humano: o EU. Existem alguns fatores que
são considerados essenciais na formação do que autores como Beck (2013) chama
de crenças centrais ou pessoais.
Experiências de
violência interferirão no desenvolvimento saudável da mente, da cognição, do
eu, enfim das crenças centrais, pois quanto mais cedo a violência acontecer,
mais devastador será para o desenvolvimento do eu, da autoimagem, da
autoestima, já que a criança ainda não tem independência emocional e/ou
maturidade plena para dar seu consentimento informado.
Em especial, na
violência sexual, decorrem consequências consideradas de curto e longo prazos.
As consequências de curto prazo manifestam-se no decorrer dos dois anos
subsequentes ao abuso, ocasionando alterações nas esferas física, psicológica e
social, tais como: distúrbios do sono, medo e dificuldades escolares.
Entretanto, a longo prazo fobias, pânico, personalidade antissocial, depressão
com ideário suicida, tentativa ou suicídio, isolamento, sentimentos de
estigmatização, ansiedade, transtornos alimentares, tensão, dificuldades de
relacionamento com pessoas do sexo do agressor, distúrbios sexuais, drogadição
e alcoolismo, além de reedição da violência, são fortemente observados.
O agressor não
possui a capacidade de cuidar e perceber as necessidades das vítimas, e a pior
forma de violência (se é que existe uma forma que seja pior) é a sofrida dentro
de casa, diretamente de seus pais, companheiros dos pais, parentes,
responsáveis ou pessoas conhecidas. Para Foucault (1976), a violência
distingue-se por uma relação de forças desiguais, configurando assim uma
relação de poder onde o mais forte subjuga, explora e domina o mais fraco. No
caso de crianças, a coerção física ou psicológica acontece em função de sua
imaturidade biopsíquica, já que é um ser humano em processo de desenvolvimento,
não possuindo condições para compreender ou mesmo evitar sujeitar-se a uma
relação de dominação como é o caso da violência sexual.
Segundo Kaplan
e Sadock (1990), as consequências do abuso sexual para a criança abarcam
aspectos físicos, psicológicos, sexuais e sociais, sendo que seus efeitos
físicos e psicológicos podem ser devastadores e perpétuos. Para Furniss (1993)
e Knutson (1995), os fatores que influenciam o dano psicológico ou a gravidade
do abuso sexual variam de acordo com a idade da criança no início do abuso, a
duração do abuso, o grau de violência, a diferença de idade entre a pessoa que
cometeu o abuso e a vítima, a importância da relação entre abusador e vítima.
Entretanto, apesar desses fatores, algo único a todas as vítimas é a percepção
de si que se formará a partir da violência vivenciada. A visão que a vítima tem
de si mesma se relaciona com a crença central construída.
As crenças são
chamadas de centrais por possuírem características disfuncionais, absolutistas,
generalizadas e cristalizadas. São regras globais e absolutas sobre si mesmo,
os outros, o mundo e o futuro. São os valores, as ideias e os conceitos que o
indivíduo possui, os mais enraizados e fundamentais acerca de si mesmo, das
pessoas e do mundo. Podem permanecer latentes todo o tempo e ainda ser ativadas
nos transtornos emocionais.
É através das
crenças centrais que o mundo é interpretado. Não importa a situação que se
apresente ao indivíduo, ele sempre pensará e interpretará consoante com suas
crenças. A interpretação que cada um faz do mesmo fato pode ser comparada a um
par de óculos adquirido ao nascer. Os óculos possuem características
específicas, uma cor decorrente de aspectos genéticos/biológicos, que podem ser
representadas por nossas tendências inatas, nosso temperamento, mas com o
passar dos anos, ele vai ficando embaçado, arranhado, devido a vivências com os
pais, professores, amigos e a sociedade em geral. Quando um ser humano passa
pela terrível experiência da violência, em todas as suas formas, seja física,
psicológica, sexual e a negligência, esses óculos ficam fortemente fragilizados
e corroídos.
A fragilidade
ocorrerá em decorrência da formação de crenças centrais disfuncionais, isto é,
da visão desadaptativa que a vítima de violência desenvolverá a respeito de si.
A visão que for desenvolvida sobre si influenciará as emoções e os
comportamentos, e o modo como o indivíduo age afetará profundamente padrões de
pensamentos e emoções, confirmando que “os homens não se perturbam pelas coisas
que acontecem, mas sim pelas opiniões das coisas” (Epíteto – século I). O que
importa para a pessoa são os “seus óculos”, a maneira como cada um percebe uma
situação vivida.
Dessa forma,
todos realizam uma avaliação cognitiva. As situações são avaliadas conforme a
cognição que se tem, a crença central de cada um. Pessoas vítimas de violência
tendem a formar crenças de desvalor, desamor e desamparo. As crenças de desamor
são aquelas expressas por um olhar para si como indesejável, incapaz de ser
gostado e amado, sem atrativo algum, imperfeito, rejeitado, abandonado e
sozinho. As crenças de desvalor são expressas por aquelas pessoas que se
percebem como incompetentes, inadequadas, ineficientes, falhas, defeituosas,
enganadoras, fracassadas, sem valor algum, e por fim as crenças de desamparo
estão presentes em pessoas que se veem como impotentes, frágeis, vulneráveis,
carentes, desamparadas, necessitadas. A violência normalmente ocasiona o
desenvolvimento destas crenças: desvalor, desamor e desamparo.
Quando as
crenças são ativadas por alguma situação, o processamento de informação
torna-se tendencioso no sentido de extrair da realidade apenas as informações
que confirmem a crença disfuncional, negligenciando ou minimizando as
informações que possam desconfirmar as evidências contrárias. Um exemplo disso
pode ser ilustrado na seguinte situação: imagine que uma pessoa possui uma
crença de desamor que é acionada com o fato de seu amigo não ter ido ao seu aniversário.
Logo, passa em sua cabeça: “Meu amigo não gosta tanto de mim como eu gosto
dele. Caso contrário, ele teria vindo”. Dessa forma, o fato do amigo não ter
ido ao seu aniversário ativa a crença de desamor, e, quando esta é ativada,
impede a pessoa a pensar em outras possibilidades para o não comparecimento do
amigo, tais como o amigo ter adoecido, ter tido problemas com o carro, etc.
Sendo assim, a pessoa com a crença de desamor entra em sofrimentos, o que
altera seu humor na festa, com reações emocionais de tristeza, raiva, passando
a agir de forma restrita quanto à interação social e posteriormente ao
encontrar com o amigo agindo com indiferença.
Para que o
sofrimento seja diminuído e até extinguido, é imprescindível que exista uma
tomada de consciência da ativação das crenças, isto é, que a cognição passe por
uma avaliação pela própria pessoa a fim de se verificar a veracidade de seu
conteúdo, para que haja uma nova percepção da situação e a mudança seja
operada. No caso de não haver ações corretivas das crenças centrais
disfuncionais, o indivíduo vai cristalizá-las como verdade absoluta e imutável.
Quando a cristalização da crença acontece, a pessoa passa a ter baixa
autoestima, uma visão ruim de si.
Com as crenças
disfuncionais cristalizadas, as pessoas vão criando estratégias compensatórias
próprias para lidar com o sofrimento causado pela crença ativada nas relações
sociais, ocupacionais, familiares e amorosas. Essas estratégias são
desadaptativas, pois trazem desajustes emocionais. Por exemplo, uma pessoa que
possui crenças do tipo “sou incompetente”, normalmente, para lidar com essas
crenças, desenvolve a estratégia do tipo: “Nem vou tentar fazer esse concurso
ou ter um bom trabalho”. Pessoas com crenças do tipo “sou insignificante”
possivelmente desenvolverão estratégias do tipo “é melhor eu me isolar, evitar
aproximação”.
Questionar o
conteúdo do pensamento, a visão que se tem sobre si torna-se fundamental para o
alívio do sofrimento e uma vida saudável. Enquanto a mente continuar ligada no
automático, acreditando em tudo que passa em seu interior, as pessoas estarão
sujeitas a viver oprimidas, com sentimentos de inferioridade e culpa. É preciso
utilizar a razão, capacidade única dos seres humanos, para combater a cognição
desadaptativa. É preciso pensar que o pensamento que causa dor é fruto de uma
cognição disfuncional. É preciso acreditar que nem tudo o que passa na própria
mente tem que ser verdadeiro, nem tudo o que se pensa a respeito de si mesmo
tem que ser verdadeiro.
É
imprescindível questionar, questionar, questionar e posteriormente avaliar o
que se pensa, as cognições, as crenças, a visão de si. Tomando consciência
dessas cognições, podemos checar as evidências que comprovam se aquele
pensamento é real ou irreal, podendo vislumbrar outras possibilidades
existentes. A mente humana é extraordinária e precisa ser explorada em sua
magnitude, avaliando tudo o que se passa nela. Considerando que as experiências
ruins distorcem o processamento de informações, distorcem a cognição humana, as
crenças centrais que cada um possui, enfim, a visão que de nos mesmos será
distorcida, gerando sofrimento.
A meta da vida
sob o olhar de Deus é tornar as lentes dos óculos que as pessoas usam, em
especial as que passaram por algum tipo de violência, transparentes, para que
os fenômenos possam ser vistos sem distorções, já que essas distorções
cognitivas influenciam os pensamentos que, por sua vez, desencadeiam emoções e
comportamentos disfuncionais. O caminho está na própria reestruturação da
cognição, na identificação das crenças disfuncionais, na identificação dos
pensamentos autodestrutivos e no esforço por questionar a visão construída de
forma desadaptativa de si próprio. Essa tarefa é por vezes dolorosa, mas
necessária no processo resiliente. Com esse novo olhar de si mesmo, todo ser
humano terá a chance de formar uma nova história, um lar.
Bibliografia:
BECK, J. (2013)
Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática (2a ed.). ( S. Mallmann,
Trad.). Porto Alegre: Artmed. (Obra original publicada em ANO.)
KAPLAN, H.I.,
& SADOCK, B.J. (1990). Compêndio de psiquiatria (2a ed.). Porto Alegre:
Artes Médicas.
KNUTSON, J.F.
(1995). Psychological characteristics of maltreated children: Putative risk
factors and consequences. Annual Review of Psychology, 46, 401-431. FURNISS, T.
(1993). Abuso sexual da criança: Uma abordagem multidisciplinar – Manejo,
terapia e intervenção legal integrados. Porto Alegre: Artes médicas.
IRANI LAUER LELLIS
Psicóloga com Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Psicóloga clínica e sócia do NUCCAP – Núcleo Cognitivo Comportamental de Atendimento Psicológico. Atua como terapeuta cognitivo comportamental, atendendo especialmente crianças, adolescentes e casais. É professora da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA na graduação e no Programa de Mestrado em Educação.
É casada há 17 anos e mãe de dois filhos, uma adolescente de 14 anos e um menino de 8 anos. Adventista, filha de pastor jubilado, atuante na igreja no Ministério da Mulher e no Ministério da Família.
FONTE: QUEBRANDO O
SILÊNCIO
http://quebrandoosilencio.org/quando-a-casa-nao-e-um-lar/
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