"Nós
devemos à nossas crianças – os mais vulneráveis cidadãos em qualquer sociedade
– uma vida livre da violência e do medo." Nelson Mandela
Os maus-tratos
contra as crianças são uma das formas de violência mais invisíveis na
sociedade. Esses abusos têm sido registrados na literatura há longo tempo e em
muitos países, mas, somente há poucas décadas foram reconhecidos como um
problema global de saúde pública.
No Brasil, o
artigo 227 da Constituição Federal de 1988 diz: “...é dever da família,
da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à saúde, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão”.
A violência
intrafamiliar e institucional traduz-se por formas agressivas e cruéis de
relacionamento de pais, educadores e responsáveis por abrigos ou internatos,
quando já está mais do que estabelecido que, além de contraproducentes, são
nocivas, porque:
- deixam
seqüelas por toda a vida;
- essas pessoas
não são propriedade de ninguém e sim sujeitos com direitos especiais
reconhecidos pela Constituição Brasileira e pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA)2;
- a violência
silenciosa encarada como fator educativo e banal ou natural é potencializadora da
violência social em geral;
- vítimas de
agressões na infância podem repeti-las, quando se tornam adultas contra os seus
próprios filhos, mantendo-se o ciclo.
Em 2000, o
governo do Estado de São Paulo, através da Lei 10.498, estabeleceu a
obrigatoriedade da notificação de maus-tratos contra as crianças e
adolescentes.
A portaria no
1968/2001 do Ministério da Saúde (MS) torna obrigatória às instituições
públicas de saúde ou conveniadas ao SUS, em todo o território nacional, o
preenchimento da Ficha de Notificação Compulsória de Maus-tratos Contra
Crianças e Adolescentes, com conseqüente encaminhamento aos órgãos competentes.
De acordo com a
Classificação Internacional de Doenças, 10ª Revisão, CID 10, os seguintes
códigos descrevem os tipos de maus-tratos:
- T 74.0 -
Negligência/Abandono
- T 74.1 -
Sevícias físicas (abusos físicos)
- T 74.2 - Abuso sexual
- T 74.3 - Abuso
psicológico
- T 74.8 -
Outras síndromes especificadas de maus-tratos
- T 74.9 -
Síndrome não especificada de maus-tratos
Um modelo de ficha foi então elaborado pela
Secretaria de Assistência à Saúde do MS, em colaboração com a Sociedade
Brasileira de Pediatria, entre outros, fazendo parte de manual publicado em
2002 (Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos
profissionais de saúde. Um passo a mais na cidadania em saúde3),
distribuído às Divisões Regionais de Saúde (DIRs) pela Coordenadoria dos
Institutos de Pesquisa (CIP), através das coordenadorias do Interior e da
Grande São Paulo. De um muito bom e atualizado conteúdo, aborda a problemática
sob dois objetivos:
1 - Oferecer um
instrumento de trabalho que contribua para ampliar conhecimentos sobre um dos
mais sérios obstáculos para o crescimento e o desenvolvimento das crianças e
adolescentes brasileiros: a violência intrafamiliar e todas as formas de
maus-tratos;
2 - Apresentar
uma proposta, que pretende ser apenas uma sugestão e não receita, de criação de
um sistema de notificação e de atendimento ao problema dos maus-tratos.
A notificação de
maus-tratos tem por objetivo principal iniciar um processo com vistas a
interromper atitudes e comportamentos violentos no âmbito da família ou por
parte de qualquer agressor para qualquer tipo de agressão. O artigo 13 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza a obrigatoriedade da
notificação de maus-tratos (casos suspeitos ou confirmados) ao Conselho Tutelar
da respectiva comunidade, a quem cabe receber e analisar essa notificação,
convidando os envolvidos para pensar, com os conselheiros, qual a melhor forma
no encaminhamento de soluções, visando o bem-estar dos agredidos.
A notificação
não é e nem vale como uma denúncia policial. Alguns casos, que se configurem
crimes ou iminência de danos maiores, o Conselho Tutelar levará ao conhecimento
do Ministério Público ou haverá a abertura de inquérito policial. Em princípio,
o profissional de saúde ou outro que notifica maus-tratos está dizendo ao
Conselho Tutelar “esta criança e sua família precisam de ajuda”. A
notificação é, portanto, uma garantia de direitos e não uma denúncia.
Apesar de multa
prevista em caso de não comunicação de tais eventos pelos médicos, professores
ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde ou ensino, a não notificação ou
a atuação deficiente de alguns Conselhos Tutelares podem ter a sua
justificativa devido a:
- Ocorrência de
experiências negativas anteriores no trato com a família da criança vitimada;
- Receio de a
criança ser encaminhada para a Febem, afastando-a do núcleo afetivo, o que
trará mais danos do que benefícios;
- A visão de que
se trata de um problema de família, “natural”;
- Temor de estar
enganado, notificando uma suspeita infundada, ser injusto;
- Desconhecimento
sobre que situações devem ser notificadas;
- Falta de
clareza sobre o processo de notificação, qual impresso utilizar, qual o fluxo a
ser seguido.
O Estatuto da
Criança e do Adolescente tem uma definição muito clara sobre o papel dos
setores saúde e educação quanto aos maus-tratos, cabendo-lhes, sobretudo, o
dever de notificar ao Conselho Tutelar do respectivo município ou área de
abrangência. O objetivo primeiro da notificação de maus-tratos é resolver, no
mais curto espaço de tempo, a situação dos agredidos, para que eles não
retornem, após o atendimento médico, aos ambientes onde se reproduzem os mesmos
comportamentos e as mesmas relações.
A violência é um
agravo social que causa danos à saúde, sendo vista, então, como um problema de
saúde pública, e não apenas uma doença do agressor ou uma doença da vítima,
demandando uma forma de intervenção que una a clínica (o atendimento e
tratamento das lesões) e a saúde coletiva (conhecendo e controlando as
situações de risco), com o acompanhamento de grupos mais vulneráveis, bem como
a implementação de políticas sociais de inclusão e proteção.
Sabe-se que
vários municípios já atuam de acordo com o ECA e têm seus Conselhos Tutelares
trabalhando de forma integrada com os setores da saúde e educação, inclusive
com propostas de capacitação dos profissionais no reconhecimento do fato.
O Centro de
Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, com a
proposta de conhecer melhor como se dão os maus-tratos – distribuição no tempo,
pessoa agredida, agressor, tipo de agressão e local de ocorrência e residência
dos agredidos – criou uma base de dados para a digitação das fichas de notificação,
com posterior devolução dos bancos de dados para o local de residência.
Por enquanto,
estamos recebendo a cópia das fichas de poucos municípios, através das
Regionais de Saúde. O número pequeno de fichas encaminhadas não permite a
generalização dos resultados para todo o Estado, mas a primeira análise
realizada mostrou que o tipo de abuso responsável pelo maior número de
notificações foi agressão sexual. Isso pode indicar que o sistema está captando
preferencialmente os casos reconhecidos como mais graves, ressaltando a
necessidade de maior divulgação e esclarecimento aos profissionais de saúde
sobre a importância do seu papel frente ao problema.
Solicitamos às
Regionais que encaminhem uma cópia das fichas diretamente ao Grupo Técnico de
Prevenção de Acidentes e Violências, do Centro de Vigilância Epidemiológica.
Autoras: Hidalgo,
N.TR e Gawryszewski V.P, Centro de Vigilância
Epidemiológica, "Prof. Alexandre Vranjac"
Referências
bibliográficas:
1.
Krug E., Dahlberg L.L, Mercy J.A, Zwi A.B, Lozano R. eds. World Report on Violence and Health. Geneva, Switzerland: World Health Organization,
2002.
2.
Brasil, Leis, etc. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8069 de 13/7/90.
SITRAEMFA, Brasília, 1990.
3.
Brasil. Ministério da Saúde, 2002. Notificação de maus-tratos contra crianças e
adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em
saúde. Brasília: Ministério da Saúde.
FONTE: BEPA – BOLETIM EPIDEMILÓGICO PAULISTA