Por ela, 18 de
maio é o Dia de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes
Araceli foi raptada e morta em 1973, mas a lembrança da
menina permanece no dia a dia do irmão, Carlos Cabrera Crespo. "A gente
convivia muito e eu sinto muita saudade dela. Apesar de todo esse tempo, não
passa um dia que eu não penso nela. Todos os dias da minha vida eu me lembro
dela", disse.
Em entrevista ao G1 por um aplicativo na internet,
Carlos, que mora no Canadá, também lembrou o dia do desaparecimento da menina e
deu detalhes de como era a vida de Araceli antes de ser interrompida
brutalmente. A menina foi uma das mais emblemáticas vítimas de violência contra
a criança no país. Por isso, após a aprovação de uma lei federal, o dia 18 de
maio foi instituído como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes.
Araceli Cabrera Crespo tinha 8 anos quando foi raptada,
drogada, estuprada, morta e carbonizada, em Vitória, no Espírito Santo. Nesta
quarta-feira (18), o desaparecimento da menina completa 43 anos, mas ninguém
foi punido pelo crime. Após a prisão, julgamento e absolvição dos acusados, o
processo foi arquivado pela Justiça.
O primeiro contato com o irmão de Araceli aconteceu em
maio de 2015, quando o G1 publicou um especial que relembrava a história da menina.
Na época, Carlos não havia dado retorno à reportagem. Em janeiro de 2016, ele
respondeu a mensagem e a entrevista foi feita pela internet.
No início da conversa, Carlos contou que Araceli nasceu
em São Paulo em 1964. A família se mudou de Cubatão, onde morava, porque ainda
bebê Araceli sofria com a poluição.
"A minha irmã quando nasceu tinha um problema muito
grave de bronquite. Um médico aconselhou meu pai a mudar para um lugar de clima
melhor, sem poluição. Aí na época meu pai arrumou emprego no Porto de Tubarão. Eu tinha cinco
anos e minha irmã nem andava ainda", contou.
Ao chegar ao Espírito Santo, a família foi morar no
bairro Jaburuna, em Vila Velha. Por ter muito cuidado com
Araceli, os pais sempre se preocupavam em colocá-la na mesma escola que o
irmão.
"A gente estudava na mesma escola, que era o
colégio Marista. Mas meu pai tinha uma casa no bairro de Fátima e depois de um
tempo resolveu mudar pra lá porque ficava mais perto do trabalho dele, no
Porto", completou.
A mudança para o bairro de Fátima, na Serra, aconteceu meses antes do
desaparecimento de Araceli, no final do ano de 1972.
"Eu fui estudar no colégio Salesiano em Vitória só
que a minha irmã não podia estudar lá junto comigo, porque na época não
aceitavam meninas. Por isso ela foi para a escola São Pedro, que tinha uma
vizinha que estudava lá".
Carlos lembrou que Araceli era uma menina doce e
inocente. "Ela era cercada de muito cuidado em casa. Eu, por ser o mais
velho, tinha muito carinho com ela. Eu não tinha outro irmão, a irmã era ela.
Apesar de sermos menina e menino convivíamos muito bem. Meu pai era muito
dengoso com ela, por ela ser menina, por ela ser a caçula, ele tinha muito
cuidado com ela", contou.
Desaparecimento
Era uma sexta-feira quando Araceli saiu pela última vez
de casa, no bairro de Fátima, em direção à Escola São Pedro, na Praia do Suá,
em Vitória. No dia, a menina saiu da escola mais cedo, a pedido da mãe, Lola
Cabrera Crespo.
Em depoimentos, a mulher contou que Araceli precisava
sair antes da aula terminar, porque poderia perder o ônibus que a levaria de
volta para casa. Carlos confirmou a história contada pela mãe e disse que o
pedido foi feito porque a aula terminava em um horário ruim para pegar o ônibus.
"Lá não era como é hoje, não passava muitos ônibus,
não tinha muito meio de transporte. Naquela época só tinha um ônibus. Ele saía
do Bairro de Fátima, ia até a Vila Rubim, dava a volta na Vila Rubim e voltava
para o Bairro de Fátima. Se você perdesse o ônibus, você tinha que esperar ele
fazer esse trajeto. Muita gente fala que a mãe deixou ela sair mais cedo, por
isso ou aquilo, ninguém procurou entender", disse.
Após sair da escola, ela foi vista por um
adolescente em um bar entre o cruzamento das avenidas Ferreira Coelho e César
Hilal, em Vitória. Ainda de acordo com esse adolescente, a menina ficou
brincando com um gato no estabelecimento.
Depois disso, Araceli não foi mais vista. À noite,
o pai, Gabriel Sanchez Crespo, iniciou as buscas. "Nesse dia eu cheguei em
casa e meus pais perguntaram cadê a sua irmã e eu falei que ela não veio no
ônibus. Meu pai foi fazer o percurso achando que talvez ela tivesse vindo a
pé. Foi meu pai e minha mãe até a escola, não conseguiram encontrar nada.
Meu pai deu parte à polícia, foi aquela procura toda. E nunca mais a gente viu
a minha irmã", recordou.
Corpo é encontrado
Dias após o desaparecimento, em 24 de maio, o corpo
de uma criança foi encontrado desfigurado e em avançado estado de decomposição
em uma mata atrás do Hospital Infantil, em Vitória.
Inicialmente, o pai de Araceli reconheceu o corpo
como sendo da menina. No dia seguinte, ele negou, afirmando que o corpo não era
o da filha desaparecida. Meses depois, após exames, foi constatado que o corpo
era mesmo de Araceli.
Violência
Anos depois do desaparecimento da menina, Carlos se
mudou para o Canadá para trabalhar como carpinteiro. Apesar da distância, ele
reflete sobre a violência que ainda acontece com as crianças no país.
"Infelizmente no Brasil é assim, acontece muito
isso. Não só aconteceu com a minha irmã, acontece com várias crianças. Eu não
gosto muito de ficar tocando nesse tema, porque a gente não tem que esquecer,
mas é uma lembrança que me faz mal. Às vezes eu me ponho a pensar para entender
o porquê disso, como que uma pessoa pode pegar uma criança e fazer semelhante
maldade. Eu não sei o quê", pontuou.
Testemunhas e
contradições
Durante as investigações, provas e depoimentos misturaram
fatos com boatos. Anos depois, o assunto ainda é um mistério. Além de grande
parte das testemunhas terem morrido, as que ainda estão vivas se recusam a
falar do assunto.
Diante dos fatos apresentados pela denúncia do promotor
Wolmar Bermudes, a Justiça chegou a três principais suspeitos: Dante de Barros
Michelini (o Dantinho), Dante de Brito Michelini (pai de Dantinho) e Paulo
Constanteen Helal – todos membros de tradicionais e influentes famílias do
Espírito Santo.
A versão da morte da menina apresentada pela acusação,
que mais tarde terminou no julgamento dos acusados, afirma que Araceli foi
raptada por Paulo Helal, no bar que ficava entre os cruzamentos da rua Ferreira
Coelho e César Hilal, após sair do colégio.
No mesmo dia, a menina teria sido levada para o então
Bar Franciscano, na Praia de Camburi, que pertencia a Dante Michelini, onde foi
estuprada e mantida em cárcere privado sob efeito de drogas.
Por causa do excesso de drogas, Araceli entrou em coma e
foi levada para o hospital, onde já chegou morta. Segundo essa versão, Paulo
Helal e Dantinho jogaram o corpo da menina em uma mata, atrás do Hospital
Infantil, em Vitória.
Acusação
Em entrevista ao Globo Repórter de 1977, o promotor
Wolmar Bermudes explicou a quem se destinavam as acusações.
"O Dante Michelini pai pesa a acusação de haver
mantido a menor em cárcere privado, dois dias, no sótão do seu bar, em Camburi.
Contra os dois, o Dante Filho e o Helal, pesam as acusações de haverem os dois
ministrado a infeliz menor tóxicos e haverem ainda de maneira violenta mantido
congresso carnal com a infeliz menina", disse na entrevista.
Ainda segundo a denúncia, Dante Michelini usou suas
ligações e influência com a polícia capixaba para dificultar o trabalho da
polícia. Além disso, testemunhas-chave do processo morreram durante as
investigações. Nenhuma dessas acusações foi provada.
Durante o julgamento, Paulo Helal e Dantinho negaram
conhecer Araceli ou qualquer outro membro da família Cabrera Crespo.
Julgamento
Em 1980, o juiz responsável pelo caso, Hilton Silly,
definiu a sentença: Paulo Helal e Dantinho deveriam cumprir 18 anos de reclusão
e o pagamento de uma multa de 18 mil cruzeiros. Dante Michelini foi condenado a
5 anos de reclusão.
Na ocasião, o juiz Hilton Silly disse em entrevista ao
Jornal da Globo que os três foram condenados, porque foi provada a
materialidade e a autoria do crime.
"Foi através não só da farta prova testemunhal, mas
também, sobretudo, da prova indiciária, que é chamada prova artificial indireta
por circunstancial, baseado em indícios veementes, graves, sérios e em perfeita
sintonia de causa e efeito com o fato principal", afirmou.
Os acusados recorreram da decisão e o caso voltou a ser
investigado.
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo anulou a
sentença, e o processo passou para o juiz Paulo Copolilo, que gastou cinco anos
para estudar o processo.
Por fim, ele escreveu uma sentença de mais de 700
páginas que absolvia os acusados por falta de provas.
Eu nunca mais vi minha irmã'
Sobre o que aconteceu depois da morte de Araceli, Carlos
disse que a família foi prejudicada com as notícias que eram veiculadas na
época. "Eu nunca mais vi minha irmã, meus pais se separaram, minha mãe
voltou para a Bolívia, que era a terra dela, o meu pai continuou morando no
Bairro de Fátima, mas ele trabalhou quase no Brasil todo. E eu continuei no
bairro de Fátima, depois fui para Bolívia com a minha mãe, depois voltei. Eu
era criança também, tinha 13, 14 anos, sentia muita falta do Brasil".
Carlos negou qualquer relação da família com os acusados
do crime. "Acusaram essas pessoas o Paulo Helal e o Dante Michelini
falando que a minha família, que a minha mãe conhecia sendo que a gente nunca
tinha ouvido falar no nome dessas pessoas. A gente conhecia a loja dos Helal
que ficava na Praça Oito e a avenida Dante Michelini. A gente nem sabia quem
era essa pessoa. Meu pai era um operário, minha mãe era uma dona de casa",
afirmou.
Depois da morte de Araceli, os pais da menina se
separaram. "A minha mãe foi para a Bolívia em 73 e retornou depois de um
ano e pouco. Meu pai e minha mãe decidiram se separar e ela foi pra Bolívia
outra vez. Meu pai se casou, minha mãe também se casou de novo. E a história é
essa. Minha mãe teve duas filhas e meu pai teve uma filha e um filho que moram
no Brasil hoje em dia".
O pai, Gabriel Sanchez Crespo, morreu em 2001. Já Dona
Lola continua morando na Bolívia, mas é viúva. "Está muito doente, ela
está com princípio de Alzheimer, estive conversando com ela e minhas irmãs. E
eu tinha notado, porque ela sempre repetia a mesma coisa e eu perguntava sobre
uma pessoa e ela não se lembrava. Minha mãe já está com 70 e poucos anos, está
bem de idade, tem problema na vesícula e já não está muito bem de saúde".
Silêncio
Segundo Carlos, a família não gosta de falar sobre o
assunto. "Eu e minha mãe nunca mais conversamos sobre a minha irmã. Eu
tenho dois filhos, eu nunca conversei isso com meus filhos, nunca falei nada.
Eu não gosto muito de conversar sobre isso. Tenho a minha esposa, ela sabe
disso. Inclusive a minha esposa conheceu a minha irmã, pouco tempo, mas
conheceu. Minha esposa morava perto".
Falar sobre Araceli trazia sofrimento para Lola.
"Esse assunto com a minha mãe eu nunca conversei, porque eu sei que é
muito dolorido para ela. Então eu nunca toquei nesse assunto e para mim também,
você ficar assim, a gente tem aquela lembrança da minha irmã, como a gente tem
até hoje. Até entendo a curiosidade das pessoas, eu não acho ruim, só não gosto
muito de ficar falando", disse.
Impunidade
Embora o caso tenha sido julgado, a sensação de
impunidade ficou. "Eu acredito que a pessoa que fez isso deva ter sofrido
muito na vida. Eu não acho que uma pessoa ao fazer isso possa deitar a cabeça
no travesseiro e dormir tranquilo. Se foram essas pessoas ou qualquer que tenha
sido, eu fico pensando: eles devem ter casado, ter filho. Como eles olham os
filhos, como eles podem olhar no rosto?", questionou.
Agora, o irmão de Araceli espera a justiça divina.
"Eu acredito muito em Deus, eu acho que a Justiça dos homens falha, tem
muitos erros, e vai falhar sempre, mas a Justiça de Deus, essa aí não tem
jeito. É uma certeza que eu tenho, só pelo fato de que se foram eles, porque eu
não posso afirmar categoricamente, eu não sei. Se foram eles, já sofreram
bastante e vão sofrer mais, porque quando chegar lá em cima as contas vão ser
postas em pratos limpos e aí é que vamos ver".
Por fim, Carlos espera guardar apenas as lembranças boas
da irmã. "A gente ficar guardando essa amargura dentro do coração não faz
bem, te derrota. O que eu guardo são as lembranças boas da minha irmã. Isso é o
que eu guardo. O tempo que a gente conviveu infelizmente foi pouco, mas foram
momentos muito legais, muito bacana. E é isso que eu guardo dela, eu não fico
pensando nisso porque se eu ficar pensando nisso o tempo todo, isso só vai me
envenenar a alma. Eu procuro deixar isso na mão de Deus, porque se os homens
não deram jeito, Deus vai dar conta disso. É isso que eu penso",
finalizou.
FONTE: G1 – O GLOBO
http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/05/araceli-vive-na-memoria-de-irmao-todos-os-dias-da-vida-lembro-dela.html
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