Até
muito recentemente, o abuso sexual de crianças era tratado como um assunto
proibido na sociedade. Entretanto, de alguns anos pra cá esse tabu vem sendo
quebrado, principalmente por conta da ação dos movimentos feministas, visto ser
a mulher a vítima mais comum. E o que tem sido encontrado é alarmante, não
apenas em freqüência de tais práticas, mas também em termos de conseqüências
biopsicossociais. A criança, além de todo o sofrimento durante o abuso sexual,
pode sofrer danos a curto e longo prazo; e uma simples intervenção precoce e
efetiva pode ter impacto decisivo, a longo prazo, no crescimento e
desenvolvimento da criança e um efeito positivo em todo o funcionamento da
família.
Portanto,
torna-se essencial que todos os profissionais de saúde que tenham contatos com
crianças estejam cientes da realidade do abuso sexual infantil e estejam
preparados para identificá-lo, para intervir corretamente e para ajudar a
criança vítima.
O
abuso sexual infantil (ASI) é definido como a exposição de uma criança a estímulos
sexuais impróprios para sua idade, seu nível de desenvolvimento psicossocial e
seu papel na família. A vítima é forçada fisicamente ou coagida verbalmente a
participar da relação sem ter, necessariamente, a capacidade emocional ou
cognitiva para consentir ou julgar o que está acontecendo.
The
American Humane Association, em seus mais recentes estudos, estima o abuso
sexual de crianças e adoslecentes nos Estados Unidos em 450 mil casos por ano.
Apesar desses números serem altos, é consenso que o número de casos não
relatados seja maior que o número de casos notificados, devido ao segredo e
vergonha que são inerentes ao ASI. Estima-se que uma em cada três mulheres e um
de cada seis homens passem por um episódio de abuso sexual. Estudos têm
revelado que os homens se abstêm de notificar o abuso sexual, devido ao medo e
à vergonha de serem rotulados como homossexuais. Sabe-se, também, que 80% das
vítimas de ASI conhecem seus abusadores. Desse grupo, aproximadamente 68% é
membro da própria família. 80% dos abusadores são homens e 20% mulheres. A
média de idade do início do ASI é de 9,2 anos para as mulheres e 7,8 a 9,7 para
os homens..
Dos
casos de ASI intrafamiliar, 75% é pai-filha (incluindo padrastos, namorados da
genitora morando na mesma casa, ou outros que tenham papel paternal), enquanto
25% dos casos são de mulheres-criança ou irmã- irmã. Esses estudos indicam que
meninas são mais abusadas sexualmente dentro do ambiente familiar, enquanto
garotos e crianças maiores são mais abusados fora da família.
No
Brasil, O Serviço de Advocacia da Criança (SAC), entidade ligada à Ordem dos
Advogados do Brasil, fez uma pesquisa a partir de processos registrados em
1988,1991 e 1992 para chegar à seguinte cifra: das 20.400 denúncias de
maus-tratos `a criança que chegam anualmente ao conhecimento da Justiça, 13%
referem-se a situações de abuso sexual, o que resulta em 2.700 novos casos a
cada 12 meses.
O
ASI pode ser intrafamiliar ou extrafamiliar; este, por sua vez, pode ser com
adultos conhecidos ou desconhecidos. Menção especial deve ser feito aos abusos
sexuais institucionais, os quais são perpetrados em instituições encarregadas
de zelar pelo bem-estar da criança.
O
ASI intrafamiliar é definido como qualquer forma de atividade sexual entre uma
criança e um membro imediato da família ( pai, padrasto, irmão ), extensivo (
tio, avô, tia, primo )ou parentes substitutos ( um adulto o qual a criança
considere como um membro da família ).
O
ASI intrafamiliar também é conhecido com incesto. Existem cinco tipos de
relações incestuosas: pai-filha, irmão-irmã, mãe-filha, pai-filho, mãe-filho.
Destes, é possível que irmão-irmã seja o tipo mais comum. Entretanto, o mais
relatado é entre pai e filha (75% dos casos ). Mãe-filho é considerado o tipo
mais patológico, sendo freqüente sua associação com psicose. Por outro lado, o
do tipo irmão-irmã provavelmente acarrete menores seqüelas.
Existem três tipos de
relações familiares incestuosas, envolvendo pai e filha, referidos na
literatura: tipo intrafamiliar, tipo multiproblemático e tipo acidental.
Tipo intrafamiliar -
Este é o tipo mais comum. Raramente é feito o diagnóstico, pois a família
parece levar uma vida normal e tranqüila na comunidade. Entretanto, com um
exame mais apurado, percebe-se que apresentam um contato limitado com o mundo
extrafamiliar. Nessas famílias, as fronteiras entre os diversos subsistemas não
são nítidas e sim difusas, com confusão de papéis sociais e psicológicos entre
seus membros. Pai e mãe sofreram privações que comprometem suas capacidades de
assumir seus papéis de pais.
O
incesto ocorre envolvendo três pessoas: o pai, a mãe e a criança. O pai
comumente possui uma personalidade passiva e introvertida, apesar de ,
superficialmente, parecer dominador. Sente-se incapaz de exercer seu papel de
pai e de marido. Geralmente inicia as relações incestuosas com a filha durante
um período de estresse, solidão ou dependência, como durante perda de emprego
ou conflitos conjugais. A atividade incestuosa pode não ser motivada pelo sexo,
mas representar uma necessidade de afeto.
O
pai obtém gratificações e conforto através da relação sexual. Freqüentemente,
inicia-se como uma simples carícia e, gradualmente, torna-se de natureza cada
vez mais sexual. Geralmente, há uma vida sexual pobre entre o casal.
A
mãe geralmente possui história de abuso sexual em sua infância e provém de
"broken homes" ( lares quebrados ). Ela própria sofreu, no passado,
privação materna e foi recipiente de ressentimentos e hostilidades de sua
própria mãe. Geralmente, é descrita como deprimida, apresentando, portanto,
baixa auto-estima, passividade e isolacionismo.
Na
maioria das vezes assume papel de protetora do marido, mas é insensível às
necessidades emocionais da filha, não conseguindo dar-lhe suporte emocional
adequado. Freqüentemente tem uma vida sexual insatisfatória e possui existência
atribulada, ausentando-se de casa devido ao trabalho ou atividades sociais. As
funções maternas como cozinha, limpeza e educação, além das sexuais, são
passadas para a filha mais velha. A mãe parece mais filha do que mãe. Apesar de
ter conhecimento do incesto, pode ignorá-lo ou até mesmo incentivá-lo, pois sua
filha a está substituindo em um papel no qual se sente incapaz e que não deseja
para si.
A
mãe facilita a situação incestuosa, pois desse modo está reeditando a situação
de sua infância: sua filha assume o papel de mãe má, que a despreza e rejeita.
Deste modo, projeta na filha seus sentimentos hostis em relação à sua própria
mãe e vivência a situação como ela sendo novamente a vítima das hostilidades
maternas. Esta é uma tentativa neurótica de elaboração de sua própria
dificuldade no relacionamento com sua própria mãe. Portanto, este mecanismo de
identificação projetiva exerce um papel facilitador para a ocorrência do
incesto.
Para
manter a aparência de normalidade, ambos, pai e mãe, concordam consciente ou
inconscientemente que a relação incestuosa é mais aceita do que uma relação
extra-marital, que poderia levar a uma ruptura do casamento e da família.
A
criança poucas vezes relata o incesto antes de chegar à adolescência, uma vez
que está envolvida na trama familiar e é profundamente dependente desses pais,
que são os únicos adultos com quem, em geral, ela pode contar. Além disso, como
possui com a mãe um relacionamento insatisfatório, isso perpetua um funcionamento
em nível oral, podendo levar a menina a voltar-se para o pai, numa tentativa de
suprir suas necessidades de ser cuidada, alimentada e amada. Segundo Bárbara
Broks, o incesto poderia estar significando esta busca de satisfação oral e
isso explicaria a longa duração que, usualmente, observa-se nessas relações
incestuosas. O incesto dura, em média, vários anos, com uma média de seis meses
a sete ou oito anos.
Neste
tipo de família, a relação incestuosa, geralmente, inicia-se com a filha mais
velha. Outras filhas serão envolvidas quando deixar a casa paterna ou quando
terminar a relação. Trata-se de uma relação perversa, que tem suas origens no
primitivo desenvolvimento psicossexual de todas as crianças em que, na
fantasia, tais relações são desejadas e permitidas.
Tipo multiproblemático -
Neste tipo de família, o problema do incesto é mais facilmente identificado,
pois é mais um aspecto a somar, na total desorganização familiar. É comum a
associação com o alcoolismo, violência, abuso físico, delinqüência e doença
mental. Há uma estrutura familiar caótica, não existindo uma relação próxima
entre seus membros. A criança tanto pode ser vítima do abuso físico quanto
sexual.
Tipo acidental - O
pai, geralmente sob influência do álcool, comete o abuso sexual que, na maioria
das vezes, não envolve coito. Esta forma de incesto pode ocorrer em famílias
estáveis, nas quais existem boa relação pai-filha. Em geral, restringe-se a um
episódio único, e o pai sente culpa e remorso. O ASI extrafamiliar é definido
como qualquer forma de atividade sexual entre um não membro da família e uma
criança. Na maioria dos casos de ASI extrafamiliar, o adulto é conhecido da
criança. O adulto tem geralmente acesso a criança como visitante ( por exemplo:
o amigo do pai, vizinho) ou como um "tomador de contas"(babá,
professor, religioso). Existem, porém, casos de ASI extrafamiliar em que o
responsável pelo abuso não é conhecido da criança. Os episódios são únicos e
ocorrem com maior freqüência fora do ambiente familiar, incluindo atos sem
violência física, como a pedofilia, ou até os atos violentos como o estupro.
Como não há envolvimento direto da família, os pais e a criança com freqüência
procuram rapidamente atendimento do profissional de saúde, contando uma
história clara de abuso.
Segundo
a gravidade do ato, os abusos sexuais podem ser divididos em : abusos
sensoriais, como pornografia, exibicionismo, linguagem sexualizada; abusos por
estimulação: como carícias impróprias em partes consideradas íntimas,
masturbação, contatos genitais incompletos; abusos por realização: tentativas
de violação ou penetração oral, anal, genital.
Existe
um curso padrão que culmina com o abuso sexual da criança. No primeiro estágio,
uma aproximação é feita. Aqui o perpetrador tem acesso à criança e oportunidade
para comportamento inapropriado. O abusador articula situações que permitam
ficar sozinho com a criança. A criança pode ser ameaçada se recusar a
participar ou pode ganhar uma recompensa pela cooperação. O próximo estágio é a
fase de atividade sexual típica, na qual o adulto pode progredir do olhar para
as carícias ou comportamentos sexuais mais invasivos, como penetração do pênis
ou sexo orogenital. Neste estágio, faz-se um pedido de segredo. A criança pode
ser ameaçada com a perda das recompensas ou com violência física, caso ela
conte o "segredo especial".
Alguns
adultos ameaçam machucar a criança ou a si próprios. Outra ameaça comum é a de
que a família será desfeita e a criança forçada a morar em uma casa de
estranhos. No estágio de revelação, o abuso se torna conhecido. Isto pode
ocorrer acidentalmente ou de propósito. A próxima fase é a de supressão. A
criança se retrai sobre o abuso, devido às ameaças feitas pelo perpetrador ou
pela negação dos pais ou pressão familiar para negar o abuso. A criança pode
sentir-se parcialmente envergonhada ou querer proteger o abusador. Finalmente,
o abuso deve parar e iniciar-se a fase de resolução. O ASI pode produzir
feridas emocionais profundas, com efeitos de longa duração. Geralmente, o
tratamento para seqüelas mais graves requer anos.
O
profissional de saúde deve estar preparado para identificar não apenas os casos
de abuso sexual em que há evidência de violência, como também aqueles casos
intrafamiliares, sem danos físicos, em que o diagnóstico deve ser investigado
minuciosamente.
O
abuso sexual envolvendo membros da família, geralmente, não se constitui na
queixa principal da consulta, de modo que o diagnóstico inicial pode passar
desapercebido. Outros fatores concorrem para dificultar a identificação desses
casos. A negação do problema, usualmente observada tanto por parte profissional
de saúde quanto da própria família, deve ser destacada.
O
ASI chega ao serviço de saúde de três formas: como queixa específica, feita
pela vítima ou seus familiares; por outras pessoas, que se preocupam com a
possibilidade de que o abuso possa estar ocorrendo; ou, finalmente, como causa
subjacente do problema principal da consulta, que surge após avaliação
minuciosa, mesmo que o problema principal não tenha relação aparente com o
abuso.
Poucas
vezes o abuso sexual é a queixa principal. Além disso, os serviços de
emergência se constituem em sua principal via de acesso. Desse modo, na maioria
das vezes escapa à detecção por exigir tempo e necessitar de uma equipe
multidisciplinar integrada para sua identificação e atendimento adequado.
Associa-se a isto a falta de treinamento para o reconhecimento e o manejo do
mesmo pelo profissional de saúde.
A
avaliação deve iniciar com a entrevista do adulto que trouxe a criança (sem a
presença dessa). Durante a entrevista devem ser observados e documentados a
história , o senso de percepção do adulto e sua resposta emocional ao evento. A
criança deve, então, ser entrevistada separadamente. Deve-se iniciar com
questões sobre a casa da criança, a escola e assim por diante, gradualmente
direcionado para a configuração da família e , finalmente, para a suspeita de
abuso propriamente dito. Os profissionais que entrevistam crianças devem
lembrar que as perguntas iniciais não devem ser diretas, visando encorajar
frases e sentenças espontâneas por parte da criança; porém, geralmente,
crianças jovens requerem questões mais específicas para provocar sua memória do
evento, pois assim, podem revelar espontaneamente os detalhes.
Recentemente,
investigadores têm enfocado a possível contribuição de desenhos das crianças e
jogos ou brincadeiras com bonecas anatômicas para confirmação de abuso sexual.
André Salame Seabra *
* Médico Psiquiatra.
Residência no Hospital do Servidor
Público Estadual de São Paulo.
Formando em Psicoterapia Existencial
pela SAEP e IFEN.
Médico concursado do Hospital Municipal
Jurandyr Manfredini (Colônia Juliano Moreira).