Projeto de Lei em
trâmite no Congresso Nacional questiona a legalidade do "tapinha"
para repreender e põe em discussão os limites entre violência e educação
Aprovado, por unanimidade, em 14 de dezembro de 2011, pela Câmara dos
Deputados, o Projeto de Lei (PL) 2404/11, que proíbe o uso de castigos físicos
na educação das crianças, vem causando polêmica e controvérsias. A “Lei da
Palmada” ganhou notoriedade na mídia graças aos questionamentos de segmentos da
sociedade, acusando o Estado de interfererir na forma como os pais criam os
filhos.
Em entrevista a DeFato, a relatora do texto na Câmara,
deputada Teresa Surita (PMDB-RR), informou que a lei vem para educar e mostrar
aos pais as consequências do ato de bater. Ela explica que o objetivo não é
punir ou obrigar a mudança de comportamento, mas orientar sobre a melhor
maneira de se educar um filho, que seria fazê-lo refletir sobre os seus atos.
“A palmada apresenta a violência, não educa. Ela paralisa, causa somente dor e
nenhuma reflexão. O que queremos é evitar casos que cheguem à violência
doméstica. As pesquisas comprovam que essa é a segunda maior causa de mortes de
crianças, só perdendo para os acidentes de trânsito. A lei vem para atingir
casos extremos de violência doméstica, negligência e maus-tratos”, explica a
deputada.
O PL ainda precisa ser votado pelo Senado e da sanção da presidenta da
República para entrar em vigor. Caso isso aconteça, alterará, ainda, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), que, atualmente, não deixa claro, segundo o
PL, quais são as restrições quanto aos maus-tratos.
A discussão não é recente. O primeiro projeto foi apresentado aos
congressistas pela deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS) — hoje ministra da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República— em 2003 e
aperfeiçoado até que se chegasse ao PL atual. A nova lei, se sancionada,
atenderá a um compromisso firmado entre o Brasil e a Organização das Nações
Unidas (ONU), de adequar a legislçação às posições do Comitê de Direitos
Humanos para crianças e adolescentes da entidade. Trinta países já aderiram e
alteraram as leis conforme o acordo.
O argumento da deputada para combater o dos pais que batem — de que
receberam palmadas e não tiveram problemas por isso —, é de que hoje eles,
simplesmente, reproduzem aos filhos aquilo que aprenderam, sem consciência
crítica acerca do que estão fazendo. “Estamos tentando mudar valores, mostrar
que é possível educar sem bater. Para tanto, a aprovação dessa lei é o primeiro
passo. Cabe ao executivo implantá-la e à sociedade receber as informações e
avaliá-las”, diz Teresa Surita.
Sobre os efeitos da futura lei, a deputada compara a questão às
políticas públicas relacionadas ao tabagismo. “No caso do cigarro, o Estado não
está se intrometendo no direito de fumar do cidadão, mas obrigando com que haja
a promoção de campanhas que mostrem os riscos provocados pelo consumo de fumo.
No caso das palmadas, o Estado ficará obrigado a informar que é possível educar
sem o uso de violência. Se o pai quer educar usando dor, vai fazer isso
consciente do risco. O que queremos é uma mudança cultural,”, argumenta.
A fundamentação
Ainda que a implementação e eficácia da possível nova lei inspirem
discussões acirradas, ela segue parâmetros internacionalmente definidos para a
educação infantil, buscando proteger integralmente os direitos da infância e da
adolescência. Essa é a opinião do psicólogo Wanderlúcio Nunes, professor do
Centro de Ensino Superior de Itabira (Censi). “Sua construção e proposição
passaram por debates com especialistas reconhecidos em educação e desenvolvimento
infantil e tenta acabar com o uso, tido como natural e eficiente, da violência
como ferramenta de educação”, diz o especialista.
Segundo Wanderlúcio, o projeto busca, ainda, enfatizar o papel do
estado no contexto, destacando a necessidade de fomentar práticas educativas e
de saúde que visem a proteção e desenvolvimento integral dos menores. “A
mudança que se busca com a proibição do castigo físico é mais ampla e sutil do
que parece num primeiro momento. A tentativa é a de se construir um projeto
pedagógico baseado na cultura do respeito, de se entender a criança como um ser
de direito e que, assim sendo, deva ser protegido de qualquer agressão”,
explica o psicólogo.
Já o pedagogo e coordenador do Curso de Pedagogia da Universidade
Presidente Antônio Carlos (Unipac) em Itabira, Jorge Florentino Botelho,
acredita que somente a implantação da lei não será suficiente para mudar o
comportamento das pessoas. Para ele, tal objetivo só será alcançado caso seja
repensado o quadro social em que as pessoas estão sendo educadas. “É preciso
fazer alguns questionamentos. O que tem sido chamado de educação? Qual o lugar
da família na sociedade contemporânea? É de suma importância refletir sobre o
que tem sido chamado de ‘palmadinha’. Não será uma lei que educará o povo, mas,
sim, uma política de educação, uma política social, em que seja possível
entender melhor o processo e não buscar soluções pelas consequências dos atos e
fatos isolados”, diz Jorge.
Para o pedagogo, a lei não é uma interferência exagerada do governo, mas
algo que, talvez, venha ajudar a corrigir um problema histórico. “O uso de
drogas é proibido por lei em qualquer idade. Mas nossas crianças estão se
drogando nas ruas, estão se matando e matando os outros. Quem seriam os pais
dessas crianças? Se moram na rua e não têm referência, seriam filhos do
governo? E, então, a lei se aplicaria a esse pai? Quer mais ‘palmadinhas’ que a
vida dá nessas crianças?”, questiona.
Por que bater?
Mesmo diante de tantos argumentos, existem pais que desaprovam a
possível nova lei e que estão convictos de que o Estado estará sim interferindo
na educação de seus filhos, caso ela vigore. É o caso do servente de pedreiro
itabirano Ézio dos Santos, 38. Ele acredita que a medida é incoerente, pois vai
tirar a autoridade dos pais. Ézio confessa que corrige com uma palmada quando,
vez ou outra, alguma de suas filhas (10, 12 e 13 anos) passa do limite. No
entanto, garante que a relação com as meninas é também de muita conversa. “Uma
palmada não mata ninguém. Se fosse assim, já era para eu estar morto. Minha
mãe, já falecida, me corrigia de várias formas. Até com fio elétrico eu
apanhei, mas nem por isso meu amor por ela diminuiu”, conta.
Essa é a mesma opinião de Eustáquio Liberato, líder comunitário do
bairro Ribeira de Baixo, em Itabira. Ele acredita no bom senso para definir os
limites entre correções e agressões. “Acredito que essa lei vá ferir o direito
de pais imporem limites aos filhos”, opina.
Pai de Guilherme Henrique, de 13 anos, Eustáquio, entretanto, revela que
dificilmente usa a palmada como recurso, por acreditar ser possível educar com
diálogo e outros métodos. “Quando repreendemos com o uso das palmadas uma
atitude anti-social de nossos filhos, é porque outros caminhos já se exauriram
e sobrou somente essa alternativa”, justifica.
O psicólogo Wanderlúcio, no entanto, lembra que é preciso que os pais
busquem a resolução dos conflitos cotidianos por meio de outras práticas, como,
por exemplo, restringir os filhos das atividades que gostam. “O que precisa
ficar claro é que a palmada não é a grande vilã de educação, mas um marco
simbólico, o ápice de todo um modelo que provou não ser o que responde
integralmente às necessidades da infância”, diz o psicólogo.
Cumprir a Lei
A conselheira tutelar em Itabira, Sabrine Stefane de Oliveira, acredita
que a Lei da Palmada, se aprovada, não trará nenhuma novidade, pois agressão
física ou psicológica e violência doméstica contra crianças e adolescentes já
são crimes previstos. “A lei apenas reforça o que está disposto no Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Em Itabira, o Conselho Tutelar recebe um grande
número de denúncias envolvendo violência doméstica e a maioria é praticada
dentro de casa, por familiares próximos”, diz a conselheira.
De acordo com a conselheira Leila Alvarenga, os pais não têm conseguido
impor limites aos filhos por não saber lhes dizer não. “Muitos ainda querem
transferir a responsabilidade de educar para professores e para o Conselho
Tutelar.”, revela.
As duas conselheiras são enfáticas em afirmar que para a Lei da Palmada
cumprir seu objetivo de educar e prestar assistência às famílias agressoras, os
municípios terão, primeiro, que reestruturar as equipes técnicas para atender a
demanda.
Para se ter uma ideia, em 2011, o Conselho Tutelar atendeu em Itabira, a
aproximadamente 2.280 casos envolvendo crianças e adolescentes. Desses, cerca
de 1.800 foram por violência doméstica. Em média, são 150 casos do tipo atendidos
por mês.
Embora muitas entidades envolvidas com a questão apresentem dados
oficiais, instituições significativas, como o Fundo das Nações Unidas para as
Crianças (Unicef), apontam o Brasil como um dos países do mundo ainda sem
estatísticas confiáveis sobre violência contra as crianças, fato diretamente
ligado à tipificação das ocorrências. Na avaliação de especialistas do
Laboratório de Estudos da Criança (Lacri/ IPUSP), os dados são fragmentados e
imprecisos, por dizerem respeito mais à incidência e quase nunca à prevalência
dos casos. Cobrem a realidade de modalidades como violência física e sexual,
por exemplo, enquanto outras continuam ocultas, como a violência psicológica e
a negligência.
Ainda que não acredite que somente a lei terá força para mudar o
panorama atual, o psicólogo Wanderlúcio Nunes a vê como um importante começo
para causar impacto na cultura da violência doméstica contra as crianças. De
acordo com ele, o Estado precisa ainda investir em outras ferramentas para uma
educação não violenta, como intervenções de especialistas e a inclusão de
conteúdos relacionados aos direitos da criança e do adolescente nos ensinos
Básico, Fundamental e Médio. “Na prática, o ideal seria criar uma sólida rede
de atendimento — com psicólogos, pedagogos, terapeutas ocupacionais,
profissionais de saúde e educação — para contribuir nos casos de desrespeito e
abuso com relação às crianças”, sugere o especialista. “Tudo isso deve caminhar
alinhado ao princípio mais amplo de educar sem violência”, conclui Wanderlúcio.
Ainda mais urgente que a aprovação ou não da “Lei da Palmada” (o que
deve ocorrer na volta do recesso parlamentar) é a necessidade do
reconhecimento, por parte das autoridades e da sociedade, de que ainda há muito
o que se fazer para que crianças deixem de sofrer violação de outros direitos
básicos já previstos na legislação, como moradia, alimentação, saúde e
lazer.
A Lei na prática
Se aprovada pelos senadores e sancionada pela presidenta Dilma Roussef,
a lei determinará ao Estado promover campanha permanente de educação e
esclarecimento para ensinar pais a educar e impor limites sem o uso de castigos
físicos.
Serão incluídos nos currículos escolares, em todos os níveis de ensino,
conteúdos relativos aos direitos humanos e prevenção de todas as formas de
violência contra a criança. Profissionais que atuem na promoção dos direitos
das crianças e dos adolescentes também receberão formação continuada.
O Projeto de Lei 2404/11 ainda prevê a integração com os órgãos do Poder
Judiciário, Ministério Público, da Defensoria Pública, Conselho Tutelar da
Criança e do Adolescente nos estados, Distrito Federal e municípios, conselhos
de Direitos da Criança e do Adolescente e entidades não governamentais.
A proposta do projeto é educativa. Assim, pais ou responsáveis que
usarem castigos físicos não seriam punidos. Entretanto, em situações mais
graves, como no caso de crianças encaminhadas para pronto-socorro por violência
doméstica, a lei prevê que a criança e os pais sejam encaminhados para
orientação psicológica, estando sujeitas às disposições já previstas pelo ECA.
Outro dispositivo
previsto é a obrigação de profissionais das áreas de educação e saúde em
denunciar casos de maus tratos de que tiverem conhecimento. O projeto também
estabelece multa de três a 20 salários mínimos a médicos, professores e agentes
públicos que deixarem de denunciar possíveis maus-tratos.
FONTE: DE FATO ON LINE
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