Eu fui
uma de tantas crianças que foram abusadas sexualmente na infância por meu pai.
Não fui a primeira nem a última. Antes de me abusar, ele já abusara de crianças
e adolescentes, tanto na família de origem dele como na da minha mãe.
Minhas
lembranças de ter sido abusada por ele, vêm desde a época que eu ainda ia ao
jardim de infância. Meu pai me assediava diariamente e esta tortura durou por
toda minha infância e também adolescência, quando comecei a tentar me esquivar
dele e a protestar contra suas investidas.
Como é
comum de abusadores deste tipo, desde pequenina meu pai fazia chantagens
emocionais comigo, pedia que eu guardasse segredo, como prova de meu amor por
ele, pois caso contrário ele afirmava que seria preso. Ele dizia que as pessoas
não entenderiam este amor dele por mim. Segundo ele, este amor que ele dizia
sentir por mim era o maior que ele já tivera. Ele dizia não sentir amor por
minha mãe e sim por mim.
Meus
conceitos de certo ou errado, ficaram afetados por muitos anos, pois o conflito
de querer acreditar que meu pai estava certo, como toda criança acredita e a
sensação de que algo estava muito errado, por causa do segredo que ele me fazia
guardar, fizeram com que eu tivesse uma percepção muito distorcida da realidade
durante a minha infância.
Jamais
consegui ter proximidade com minha mãe ou ser amiga dela, nem eu sentia que ela
era minha amiga, pois meu pai dizia que se ela sentiria muitos ciúmes e raiva
de mim se um dia soubesse que ele amava mais a mim do que a ela. Assim, como
defesa, eu passei a sentir raiva dela desde criança.
Anos mais
tarde, quando eu já era adulta, fiquei sabendo que ela tinha conhecimento de
que meu pai abusara de pessoas na família dela também, antes de eu nascer.
Sabendo disto não consegui mais ter respeito por ela depois de perceber que,
apesar de ela saber que meu pai continuava a abusar sexualmente de crianças,
ela ainda insistia tanto em querer ficar ao lado dele.
Acho
importante transmitir às pessoas o quanto o abuso sexual se estende para muito
além do próprio abuso sexual. Isso afeta a vida das pessoas no sentido mais
intenso e mais extenso que qualquer tipo de violência pode causar, ao mesmo
tempo que deixa a pessoa viva para sofrer a dor do abandono, da traição e do
desamor.
Minha
baixa auto estima, meu sentimento derrotista e minhas dificuldades de
relacionamentos culminaram em uma forte depressão aos meus 26 anos, quando fui
abandonada por um namorado, que apesar de ser médico, dizia não conseguir
conviver com meus estados depressivos. Como muitas das vítimas de abuso sexual
na infância, eu também não quis mais viver…
Após
longo período de hospitalização, psicoterapia e antidepressivos, tive retomada
a vontade de viver. Mas o principal motivo, foi acreditar que eu era amada por
aqueles que me socorreram: meus próprios pais.
Pedidos
de desculpas, foram encarecidamente apresentados, assim como cumprimentos de
novenas e promessas de que meu pai jamais abusaria sexualmente de qualquer
pessoa novamente, em troca do meu perdão. Ele se declarava "curado"!
Jurava que eu podia acreditar nele a partir de então.
Eu era a
pessoa que mais queria acreditar nisso. Eu acreditei que a iminência da minha
própria morte o fizera perceber o quanto ele havia me machucado e o perdoei
tentando recomeçar uma vida nova. Eu não fazia idéia ainda, de que a história
acontecida comigo voltaria a se repetir por muitos anos afora.
Mais
tarde, depois de perceber toda a farsa, ao me dar conta de que ele voltara a
abusar sexualmente de crianças, passei anos me debatendo em brigas com meu pai
e ele tentando convencer as pessoas de que eu era louca.
Todas as
tentativas de fazer com que as pessoas acreditassem em mim foram inúteis. As
pessoas da minha família achavam que eu tinha uma obsessão em suspeitar dele
por causa do que eu havia vivido na infância.
Fiquei
mais uma vez isolada, desta vez por trazer a verdade à tona e tentar proteger
novas vítimas.
Sem as
interferências negativas de minha família, consegui me fortalecer, apesar de
ter carregado ainda por muitos anos o sentimento de culpa de que se um dia eu
fosse tornar pública uma denúncia contra meu pai, eu iria destruir minha
família.
Apesar
disso, a idéia não me saia da cabeça, pois eu sabia que ele continuava a
molestar crianças, mas eu me sentia ainda acuada e isolada para tomar uma
atitude em relação a isso.
Tudo
mudou, quando tomei conhecimento da ASCA, uma organização de sobreviventes de
abuso sexual na infância aqui na Austrália.
Ao ouvir
as histórias de outras sobreviventes, me dei conta de como minha história se
repetia na vida de tantas outras pessoas que eu nem conhecia e também de como
ficava mais claro olhar de fora a experiência destas pessoas e analisar meus
próprios traumas.
Além dos
encontros, outras formas de ensinamentos compartilhados foram a intensa leitura
de obras literárias de outros sobreviventes, de terapeutas do ramo e de
pesquisas.
Com tudo
isso, passei a não me sentir mais isolada e sim fortalecida. Eu me
conscientizei, a partir de então, que era meu direito reclamar minha dignidade
e também era meu dever alertar as pessoas para proteger novas vítimas de meu
pai.
Depois de
denunciar meu pai por escrito para as autoridades no Brasil e não ter recebido
resposta em tempo devido, resolvi lançar o site R-Evolução Anti Pedofílicos,
como meu último pedido de socorro.
Decidi
que ninguém mais me faria calar todas as angústias e repressões que eu tinha
atravessadas na garganta por toda minha vida.
Foi a
partir daí que a coisa começou a tomar jeito. A promotoria apresentou a
denúncia e com o tempo outras vítimas de meu pai começaram a confirmar os
abusos.
Quando o
abusador já estiver em idade avançada, como no caso de meu pai, as pessoas se
deixam influenciar pela aparência do velho frágil e desprotegido, sem se dar
conta de que por trás daquela imagem ilusória existe uma pessoa perigosa.
Outro
problema que ainda existe é a crença de que crianças querem seduzir os adultos
através do sexo. Não existe como a vítima ver no terapeuta o seu aliado, se
este não acredita na inocência, tanto do ato, como da intenção desta.
Quebrar o
silêncio é o primeiro passo para isso.
Entretanto,
também é necessário que esta possa se valer de direitos e de mecanismos legais
de proteção e de reconhecimento e de respeito pelos danos sofridos.
A falta
de legislação adequada que garanta a proteção das vítimas e testemunhas, bem
como o afastamento definitivo do abusador de suas vidas, faz com que a grande
maioria jamais reclame ou tome a iniciativa de denunciar os abusadores.
Depoimento de Elisabeth Nonnenmacher
Sobrevivente de abuso sexual na infância e editora do site R-Evolução Anti Pedofílicos (www.r-eap.org).
Sobrevivente de abuso sexual na infância e editora do site R-Evolução Anti Pedofílicos (www.r-eap.org).
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