Em um grande mutirão nacional, 565 crianças foram ouvidas em 10
capitais, no mais profundo retrato sobre meninos de rua já feito no país.
Quantas
são? Quem são? Por que elas abandonaram a casa, a família? Você também já se
fez essas perguntas diante de uma criança de rua. O assunto é comovente,
importante e tema da reportagem especial de Marcelo Canellas.
Acho que viver na rua
é você sentir na pele que você não tem mais nada, que você tá no fundo do poço.
Não há uma única
grande cidade brasileira que não conviva com essa vergonha.
Saem das suas
comunidades e vêm refugiar-se nesse grande campo de refugiados aqui que é o
centro de São Paulo.
“Por isso que a gente
considera que eles são refugiados urbanos”, explica Lucas Carvalho, psicólogo
do projeto Quixote.
Crianças ainda, ou
mal saídos da infância, e já sem esperança alguma.
Fantástico: Que que cê acha que vai tá fazendo com 18 anos?
Jovem: Com 18 ainda é de menor ou maior?
Fantástico: Se fizer 18 já é maior. Até 18 é menor.
Jovem: Vai pro presídio.
Fantástico: presídio? Você acha que vai pra
lá?
Jovem: Vai, tio. Ó, ou vai para o presídio ou
morre!
Por que eles estão na
rua?
Fantástico: Você tá com 14 anos, né? Com quantos anos você saiu a
primeira vez de casa?
Jovem: Com nove, dez, por aí.
Fantástico: Você lembra como é que foi esse dia?
Jovem: Eu fugi.
Quantos são? Quem
são? O que querem?
Fantástico: Você não quer ficar na rua, quer?
Jovem: Não! Quero parar, quero mudar
minha vida.
A ONU já falou em
cinco milhões. O IBGE nunca contou. O fato é o que o número de meninos e
meninas de rua ainda é um grande mistério.
“Nós não sabemos
quantas crianças, quem são elas, onde estão”, afirma Manoel Torquato,
coordernador da campanha ‘Criança não é de rua’.
Em 2011, o governo
pagou R$ 1,5 milhão para um instituto de pesquisa contá-los.
Mas no Maranhão, por
exemplo, só acharam 23 meninos. E o número apurado no Brasil inteiro, 23.973,
caiu em descrédito.
Fantástico: Não adianta um pesquisador chegar com uma prancheta na
mão e fazer perguntas convencionais pra uma criança de rua?
“Não adianta. Os
educadores sociais, os técnicos, as equipes que acompanham esses garotos e
essas garotas, esses sim conseguem se aproximar”, responde Manoel.
O projeto ‘Criança
não é de rua’ preferiu uma pesquisa qualitativa, por amostragem, feita
justamente por educadores. Num grande mutirão nacional, 565 crianças foram
ouvidas em 10 capitais, no mais profundo retrato sobre meninos de rua já feito
no país.
A plataforma digital
rua Brasil sem número, validada pela Universidade Federal do Ceará, descobriu
que 87 % das crianças e adolescentes de rua são negros ou pardos. E 77% são do
sexo masculino.
Quem está na rua,
deixa de ir à escola. 11% são analfabetos e 47% não completaram o quinto ano do
Ensino Fundamental.
Fantástico: Você sabe ler?
Criança: Não.
Fantástico: Sabe escrever?
Criança: Não.
Fantástico: Você tem documento?
Criança: Não. Vou tirar ainda.
Qual o motivo de ir
para a rua?
Seis por cento dizem
que é a violência doméstica. 9,8% fogem da miséria. 23% relatam conflitos na
família. E 37% são atraídos pelas drogas. As drogas também são o principal
motivo da permanência nas ruas para 54% dos meninos. Depois vem os conflitos na
família: 18%.
Criança: Uso só quando eu tenho dinheiro. Quando eu não tenho eu
não uso não.
Fantástico: E você consegue o dinheiro aonde?
Criança: Ah, eu peço aos outros.
A pesquisa confirma:
53% dos meninos conseguem dinheiro pedindo esmolas. 11%, vendendo mercadorias
no sinal.
O que significa que a
esmola financia o uso de drogas, pois 63% dos meninos gastam o dinheiro em
bocas de fumo. E só 22% comprando comida. Mas a grande surpresa da pesquisa
rompe um preconceito.
“A população em geral
acredita que esses meninos ou são órfãos, ou foram abandonados pelos pais, ou
têm situações graves de violência praticada no contexto familiar. Na verdade
são conflitos apenas. Existe uma família ali”, afirma Manoel.
Só 8% são órfãos. 92%
têm família. E 77% consideram a mãe a pessoa que mais amam.
Depois vem a avó, com
10% e o pai, com 7%.
Esse dado objetivo
mostra claramente a importância da família. Ao contrário do que se pensava, nem
todo menino sem casa é um menino sem lar. Existe alguém esperando por ele,
existe alguém procurando por ele. Existem laços de afeto que nem a violência,
nem a miséria e nem o desinteresse dos políticos conseguem romper.
“Quando eu acordo com
o coração muito aflito, que é quando eu levanto e não falo pra ninguém aonde eu
vou. Eu saio em busca dele”, conta a mãe de um jovem.
Dez, doze horas por
dia, zanzando por São Paulo.
Fantástico: Onde que você procura?
Mãe: Na cracolândia, no meio dos viciados.
Fantástico: Você encontra ele ali?
Mãe: Às vezes, sim.
Mas nem todos os
argumentos do mundo evitam mais uma viagem perdida.
“Ele já escapou pelos
meus dedos que não dá para segurar mais. Ele já conheceu esse mundo de louco
aqui fora”, conta a mãe de um menor de São Paulo.
Mesmo assim, ela
voltará amanhã para alimentar a mesma esperança de sempre.
“Que ele desperte,
acorde, abra os olhos e fale assim: ‘não, hoje eu vou embora para a minha casa
de vez’”, completa.
“Às vezes eu piro,
sabe? Às vezes eu fico falando sozinha. Por quê? Eu me pergunto: no que eu
errei? O que eu tenho de fazer? Entendeu? Eu fico perdida”, diz a mãe de um
jovem do Rio de Janeiro.
Outra mãe já perdeu a
conta das noites em claro.
“Ela é menina. Eu não
consigo dormir, eu não consigo comer, pensando onde está a minha filha”,
lamenta.
Os educadores da
Associação Amar estão tentando ajudá-la.
Eles trabalham junto
aos meninos que dormem na rua, e tentam convencê-los a voltar para casa.
Mas são muitos os
casos em que crianças pequenas são informalmente adotadas por moradores de rua
adultos.
“São laços muito
tênues, que se rompem muito fácil. Basta acontecer um problema maior”, explica
Roberto José dos Santos, coordenador da Associação Amar.
Por isso o esforço de
recompor as famílias de fato, que ainda preservam laços de afeto, como o da
adolescente que está sendo procurada pela mãe.
Há cinco anos vivendo
na rua, a garota de 14 anos diz que não usa mais drogas.
Menina: Eu não tenho vício de nada, eu tenho vício de rua.
Fantástico: Vício de rua? O que é vício de
rua?
Menina: É querer, você querer ficar na
rua, viver na rua.
Ela acha que vício de
rua se perde com a maior paixão:
Fantástico: Se eu fosse jogar basquete, aí eu ia me distrair.
Menina: Ah, esporte?
Fantástico: É. Me distrair com alguma coisa.
Porque se eu ficar em casa só, vou pensar nas pessoas da rua, na rua.
O sonho dela é jogar
com o ídolo Michael Jordan, o Pelé do basquete americano.
Menina: Pra mim, parece que ele é feliz.
Fantástico: Parece que ele é feliz, né? E
você é?
Menina: Não.
Fantástico: Não? Por quê?
Menina: Porque a rua não traz felicidade.
A mãe, artesã que dá
duro, mas ganha muito pouco, mora numa comunidade que não tem nem água potável,
que dirá quadra de basquete.
“Eles precisam
colocar coisas na cabeça desses jovens, entendeu? Um esporte, alguma coisa
concreta, entendeu? Alguma coisa concreta”, diz a mãe de uma jovem do Rio.
Há carinho e
reconhecimento de parte a parte. E cada uma sabe de seus erros e fraquezas.
“Eu que fui
desobediente. Não foi minha mãe. Minha mãe falou pra mim, minha mãe fala. Eu
que vou e fujo dela”, confessa uma menor.
“Tudo o que eu
preciso é que ela segure mais na minha mão, sabe? Fica comigo. Às vezes eu falo
com ela como eu estou chorando agora: ‘fica comigo. Que aqui você está
protegida. Aqui eu posso te agarrar e falar: não, aqui ninguém vai tocar em
você’”, conta outra mãe.
Talvez a saída esteja
nelas mesmo.
Aí está, para os
coordenadores da pesquisa ‘Criança não é de rua’, um caso em que um
empurrãozinho do Estado teria recomposto a família com facilidade.
“Dado uma atenção
maior às famílias, esse motivo de ida para a rua vai diminuir drasticamente. E
essa atenção à família não é foco das políticas públicas praticadas hoje”,
analisa Manoel Torquato.
As iniciativas de
estado têm se restringido ao recolhimento forçado e o envio das crianças de rua
para abrigos mantidos pelas prefeituras.
“Nós não queremos
ninguém dormindo nas ruas do Rio de Janeiro. Nós achamos que a rua não é lugar
para ninguém dormir, seja criança ou adulto. E a gente quer que as pessoas
recebam do poder público uma oferta de solução para esse problema, digna, e que
respeite o seu direito”, diz Adilson Pires, Secretário de desenvolvimento
social do município do Rio de Janeiro .
O Projeto Quixote, de
São Paulo, prefere apostar no convencimento como estratégia de recomposição das
famílias. Foi assim que conseguiu algumas vitórias.
“Ele não pensa mais
em droga, ele não pensa mais em fugir”, diz a mãe de um jovem.
O garoto fez questão
que a mãe conversasse conosco. Ficou ao lado dela durante a entrevista, foi
carinhoso o tempo todo, mas ainda mantém a temporada na rua na sombra do
silêncio.
Fantástico: Por que você resolveu sair?
Jovem: Não quero falar.
Fantástico: Não quer? Tá bom. Não quer, não
precisa falar.
Também não é pra
menos.
“Era 24 horas na Luz,
procurando ele. Uma vez um usuário ia me furando, do cabo de um cachimbo,
porque eu achei ele no meio do usuário”, desabafa a mãe do jovem.
Foram quatro anos de
insistência.
“Teve um dia que o
pai dele, no Natal do ano passado, o pai dele passou o ano novo na rua,
procurando ele, na Luz. Muito Natal e Ano Novo. Ele nunca passava com a gente”,
lembra a mãe.
Ficou três meses em
uma clínica de desintoxicação. E já está há seis meses sem fugir de casa.
“Sempre eu pedia, né?
Meu Deus, para guardar meu filho. E ele me deu ele de volta, agora, são e
salvo”, comemora a mãe.
Talvez a solução
esteja nas próprias crianças. E em não aceitar mais como normal que elas não
vivam a plenitude da infância.
“Não é porque estamos
lidando com vidas secas que sejam vidas ocas. As crianças têm, sim, muita
potência. Chega do que tá acontecendo, não é mais possível continuar
acontecendo o que está”, diz o Lucas Carvalho, do Projeto Quixote.
FONTE:
FANTÁSTICO REDE GLOBO