Quando a negligência é emocional - também chamada de abuso
psicológico - ela compreende a deterioração do ambiente interpessoal da casa e
induz alguns aspectos negativos na criança em relação ao senso de segurança
física e emocional, aceitação, autoestima, consideração e autonomia.
"Embora haja pouco consenso sobre a definição, a negligência emocional tem
sido, na prática, considerada como a falta de responsabilidade e de 'calor'
materno ou, ainda, a falta de consistência e predeterminação no trato com a
criança, especialmente no plano disciplinar", explica.
Sobre
a síndrome de Münchausen, é uma situação na qual uma pessoa inventa doenças ou
situações para ir ao médico. Nas crianças, é chamada de síndrome de Münchausen
por transferência. "Nesse caso, o adulto, normalmente a mãe, se utiliza da
criança com esse pretexto. Ele inventa ou cria uma situação na criança,
levando-a a ficar doente, para com isso estar em contato com o meio médico. É
uma doença psicológica", esclarece.
"Geralmente confundem os médicos
por sua amabilidade, total cooperação, aparência de equilíbrio e afeto pelo
filho ao qual visitam no hospital com uma frequência não habitual. Por outro
lado, ao serem entrevistadas, acabam por mostrar personalidade histérica,
depressão ou graves transtornos de relação mãe-filho."
Método e resultados
Outro achado importante do estudo é que os
pacientes que não voltaram a residir com os responsáveis (por adoção,
institucionalização ou novo núcleo familiar) apresentaram sensível melhora de
suas condições físicas e sociais quando comparados àqueles que retornaram ao
núcleo familiar inicial. Porém, o médico ressalta que a evolução das suas
condições psicológicas foi insatisfatória, independentemente do destino após a
alta hospitalar.
Segundo o médico, além dos exames físicos e laboratoriais,
conhecer a história clínica da criança é fundamental para o diagnóstico de
abuso. Ele explica que essa tarefa começa perguntando-se para a criança o que
aconteceu - passo crucial na diferenciação entre trauma intencional e
acidental. "Outros pontos importantes a serem observados são: pais que
omitem total ou parcialmente a história de trauma; pais que mudam a história
toda vez que são interrogados; histórias diferentes quando são questionados os
membros da família isoladamente; demora inexplicável na procura de recursos
médicos na presença evidente de trauma; crianças maiores que não querem relatar
o que aconteceu, com medo de represálias, em especial quando os agentes
agressores são os pais", ressalta o texto do estudo.
Como
as consequências dos maus--tratos fogem à esfera física, incluindo
consequências de ordem emocional que podem ser bastante graves e persistir por
longo tempo ou, até mesmo, por toda a vida, Antônio explica que toda a
abordagem deve envolver, além da equipe médica e de enfermagem, psicólogos e
assistentes sociais e contar com a presença de esferas legais do poder.
"Contudo, é importante lembrar que, por mais evidências que tenhamos, nós
nunca fazemos o diagnóstico de abuso. Nós fazemos a suspeita clínica. A partir
daí, a criança é encaminhada para as varas de infância e juventude."
Condições psicológicas
Entre os resultados da pesquisa, Antônio conta que 73,6% das
crianças tinham até 2 anos e apresentavam as mais variadas lesões - desde
fraturas múltiplas, fraturas de crânio e quadros de hemorragia intracraniana.
"As crianças submetidas a abuso físico, quando necessitam de tratamento em
regime de internação hospitalar, apresentam alta letalidade e alto índice de
sequelas neurológicas graves", diz.
O
estudo também comprovou que, independentemente das condições sociais e físicas,
a maioria dos pacientes mostrava algum traço negativo em seu comportamento,
predominando baixa autoestima, dificuldades escolares, traços depressivos e
dificuldade de relacionamento.
Unicef defende nova
abordagem para as políticas de proteção às crianças
Percebendo
que estratégias para o combate aos abusos contra crianças frequentemente se
constituem de iniciativas fragmentadas, cujos resultados ainda estão longe dos
ideais, a United Nation's Children's Fund (Unicef), juntamente com outras
organizações mundiais, como a Ssave The Children e a United Nations High
Commissioner for Rrefugees (UNHCRr), passou a defender a necessidade de um
sistema de defesa mais amplo e conjuntural.
De
acordo com o órgão da OoNU, programas voltados para a proteção de crianças são
focados para combate específico de problemas como violência, exploração, abuso,
negligência, trabalho infantil e tráfico de crianças. Na visão dos autores,
esta abordagem, ainda que possa ser benéfica para um grupo delimitado de
crianças, "pode resultar em programas falhos", uma vez que o foco em
temas isolados é preterido à "compreensão de como cada um desses pontos se
relaciona num sistema geral".
O
ideal, segundo a Unicef, é a instauração de uma política de proteção que aborde
conjuntamente vários fatores de risco ao bem-estar e à saúde das crianças,
coincidindo ao mesmo tempo com iniciativas da família, comunidade e finalmente
toda a sociedade para garantir os direitos básicos de toda criança.
Além dos exames físicos e laboratoriais,
conhecer a história clínica da criança é fundamental para o diagnóstico de
abuso
Segundo
Antônio, a rotina de maus-tratos pode gerar um ciclo perigoso, já que a criança
abusada, hoje, pode se tornar um adulto problemático amanhã, com boas chances
de repetir na sua família a sua história de violência. "O impacto da
exposição à violência vai além dos distúrbios comportamentais e emocionais. Ele
afeta a percepção das crianças em relação ao mundo e a elas próprias, suas
ideias sobre o significado e os propósitos da vida, suas expectativas
referentes à felicidade futura e o seu desenvolvimento moral", mostra o
estudo.
Entretanto,
as consequências podem variar de acordo com a especificidade de cada situação.
Segundo Marina Rezende Bazon, psicóloga pós-graduada pela USP, ainda que os
casos chamados de "puros" (onde só há abuso psicológico, físico ou
negligência, sem influência de nenhuma outra modalidade) sejam raros, cada um
deles pode acarretar problemas distintos. A psicóloga, que vem atuan- do em
linhas de pesquisa voltadas para os "maus-tratos contra a criança e o
adolescente", explica que o reflexo de sofrer abusos físicos normalmente
se manifesta em dois extremos: ou a criança se torna agressiva, brigando nos
esportes e com seus colegas; ou desenvolve uma personalidade acolhida, sendo
"supermedrosa no contato com adultos", o que aparece também como uma
dificuldade em lidar com figuras de autoridade e professores.
Já
o abuso psicológico, segundo Marina, é um "quadro que produz muita
sintomatologia, como queixas de natureza psicossomática na criança, como se tivessem
muitas dores de estômago e na cabeça", ressalta. A negligência, por sua
vez, é uma das modalidades às quais é preciso estar especialmente atento, uma
vez que geralmente se estabelece ao longo do tempo por remeter a padrões de
cuidado dos pais, sendo associada, em situações extremas, com casos de óbito.
"Se compararmos o impacto da negligência ao das outras modalidades, mesmo
do abuso sexual, as crianças negligenciadas de forma crônica têm mais déficits,
mais problemas que todas as outras", alerta.
A
Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS)
destacam que ter vivido situações abusivas tem influência mesmo na vida adulta.
Este tipo de expe- riência tem relação direta com o desenvolvimento de
problemas psicológicos, como depressão e transtornos alimentares, além de estar
associado à obesidade, maior suscetibilidade ao abuso de drogas e ao
comportamento sexual de risco, podendo ser responsável também por adultos com
condutas de trabalho ineficientes e relações sociais baseadas em violência. Um
relatório da OMS lembra que, devido a estas consequências, maus-tratos a
crianças deixam de ser um problema exclusivamente familiar para afetar toda a
sociedade, não só pelo desenvolvimento de cidadãos com sérios problemas de
adaptação social, mas também pelo impacto econômico de custos como
hospitalização e tratamentos destes indivíduos.
Figuras
que contraponham a negatividade associada à pessoa responsável pelos
maus-tratos podem ajudar a garantir um desenvolvimento menos traumático.
"Digamos que na família o abusador físico seja o pai, mas a mãe tenta
proteger, mediar, de forma que o impacto (dessa experiência de maus-tratos) é
moderado", exemplifica. Pessoas de fora do ambiente familiar também podem
fazer este papel. "A criança pode ir para uma escola onde há uma ou mais
professoras bem adequadas, no sentido de serem mais sensíveis, mais delicadas,
e funcionarem como figuras de cuidado e apoio, o que atenua [os efeitos do
abuso]", diz, ressalvando a importância de que profissionais que trabalham
diretamente com crianças tenham em sua formação o conhecimento dos sintomas
geralmente associados com maus-tratos, para que possam identificá-los e, a
partir daí, oferecer ajuda.
Quem maltrata e por quê?
O estudo do pediatra Antônio Cardoso verificou que, em situações de maus-tratos
infantis, encontram-se com frequência pais emocionalmente imaturos, neuróticos
e psicóticos, mentalmente deficientes e ignorantes, sádicos, criminosos,
toxicômanos, incluindo alcoólatras e "disciplinários". Contudo, o
padrão é o de pais aparentemente normais, o que, para o médico, pode ser um
dado que dificultará muito mais o diagnóstico.
Para
Adriana Marcassa Tucci, professora do Departamento de Saúde, Educação e
Sociedade da Universidade Federal de São Paulo, existem vários fatores que
podem deixar um indivíduo em uma situação de risco psíquico. A psicóloga, que é
doutora em psicobiologia pela Unifesp dentro da temática de abuso de álcool e
outras drogas e violência contra criança, explica que o abuso e/ou dependência
de substâncias psicoativas, como ál- cool e outras drogas, têm sido associados
a situações de maus-tratos (abuso ou negligência) contra a criança. "Por
exemplo, na fase de abstinência da substância ou sob o seu efeito, o indivíduo
pode ficar com muita irritabilidade e cometer atos violentos ou negligentes.
Situações de abuso sexual contra crianças também têm sido associadas ao consumo
excessivo de álcool e de outras drogas", explica.
Conflitos familiares e de casal podem deixar o ambiente mais
propício para se cometerem atos de violência contra a criança
Mas,
segundo Adriana, alguns aspectos sociais também podem deixar uma criança em
situação de risco. "Maior vulnerabilidade está presente em situações
sociais menos favorecidas. A pobreza é uma situação de risco, pois vários
fatores, na maioria das vezes, estão presentes nela, tais como: desemprego,
condições insatisfatórias de moradia, de educação, de saneamento básico, de
acesso a serviços de saúde, convivência com o tráfico de drogas e violência
associada a este, entre outros", afirma.
Os
fatores de vulnerabilidade e risco, segundo Adriana, envolvem, portanto, não só
os fatores presentes no âmbito familiar, mas também questões sociais, culturais
e mesmo a presença de eventos estressantes. Além disso, conflitos familiares e
de casal podem deixar o ambiente mais propício para se cometerem atos de
violência contra a criança.
Como prevenir?
Para Adriana, a prevenção engloba muitas esferas, e as
ações
preventivas devem ter o apoio do Ministério da Saúde, destinando verba,
treinando profissionais, etc. "A prevenção pode ser feita no primeiro
nível social, onde a violência ainda não aconteceu com famílias que apresentam
características de vulnerabilidade e risco. Nestes casos, a prevenção deveria
envolver o trabalho do agente comunitário, vinculado aos serviços de atenção
básica à saúde, na divulgação dos malefícios que a violência causa à criança e
incentivando a denúncia, por exemplo. A prevenção pode ser feita também nas
escolas, onde é possível trabalhar com os pais e com a própria criança",
considera.
Segundo
a psicóloga, a prevenção aos maus-tratos à criança onera menos o sistema de
saúde do que o trabalho com a vítima - o que exige uma atenção mais
especializada e, por isso, mais cara. "Embora o SUS preconize a prevenção,
ainda temos poucos municípios investindo na porta de entrada do Sistema Único
de Saúde, ou seja, na prevenção. No Brasil, não vemos muitos investimentos
na atenção primária. Porém, temos exemplos de países, como Austrália e Estados
Unidos, que mostram que é possível prevenir os maus-tratos infantis, sim. Para
atingir resultados significativos, porém, a prevenção primária deve ocorrer em
parceria de maneira intersetorial - educação, assistência social, saúde,
jurídico, etc.", ressalta.
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