Nos idos dos anos 2000, lendo as notícias dos periódicos de Roraima, chamou-nos
à atenção para a prática de um crime que começava a ocupar as páginas policiais
– o de crianças índias serem abusadas sexualmente por membros de sua própria
comunidade.
Numa destas matérias, o Jornal Folha de Boa Vista registrou o caso de uma
criança índia da aldeia Ianomâmi ou Yanomami, de dois anos de idade, que havia
sido estuprada pelo próprio tio, quando estava sob responsabilidade deste em
uma entidade com função de acolher os índios que vinham à cidade a procura de
assistência médica. A mãe da criança índia encontrava-se com outro filho
enfermo no hospital de nossa capital.
De acordo com as informações da imprensa, a índia vítima chegou gravemente
ferida ao pronto socorro infantil, sangrando muito pela vagina, sendo submetida
a uma cirurgia de emergência. A médica de plantão, que atendeu o caso,
esclareceu aos meios de comunicação, que a criança índia teve ferimentos no
períneo, ou seja, teve um rompimento entre o ânus e a vagina, que ficaram
interligados externamente.
A assistente social do pronto-socorro comunicou o fato ao conselho tutelar de
nossa cidade, que imediatamente iniciou o atendimento do caso, sendo informado
pela direção da entidade, onde em tese ocorreu o crime, que em casos dessa
natureza o procedimento era encaminhar o autor do delito para o órgão de
assistência ao índio – Fundação Nacional do Índio, para os devidos fins legais.
Os conselheiros tutelares ao chegarem neste órgão ficaram sabendo que o índio
autor do estupro já havia sido entregue para uma organização não-governamental,
que prestava atendimento aos Ianomâmi em suas terras, para que fosse
apresentado ao tuxaua da aldeia, a fim de sofrer as penalidades de acordo com
sua cultura e tradições. O conselho tutelar preocupado com o desdobramento do
caso informou à polícia federal, que acabou instaurando inquérito policial em
seu âmbito.
Com efeito, a violência sexual contra criança não é fato novo. A própria bíblia
nos relata abuso sexual de criança por adulto e de incesto praticado pelos
próprios pais ou parentes, desde épocas remotas. Na história da humanidade
temos como exemplo, os ptolomeus do Egito, que após vários casamentos entre
irmãos, produziram Cleópatra. Outro exemplo está na mitologia grega, onde Édipo
mata o pai para se casar com a mãe.
Poucos são os estudos e levantamentos estatísticos sobre a violência sexual
envolvendo criança índia no Brasil, mas se sabe que esta não integra a cultura
Ianomâmi. Por outro lado, este caso revela que o abuso sexual de uma criança
índia é a demonstração que a violência sexual é um fenômeno que pode ocorrer em
qualquer etnia, uma vez que a cultura da violência é geral e comum a todos e os
laços de consangüinidade e afetividade não asseguram sempre o amor necessário
para a proteção das crianças.
No México, para os índios da Sierra Madre, o incesto pai-filha faz parte da
cultura indígena, o mesmo ocorrendo no Brasil, na reserva indígena Caiuas, em
Mato Grosso do Sul, onde as meninas bem cedo são privadas da companhia dos pais
para não serem submetidas a abuso sexual, considerado como atitude normal. Como
se percebe, o conceito de abuso sexual contra criança está na dependência de
padrões culturais.
No caso noticiado o abuso sexual foi praticado distante da aldeia indígena,
dentro de um órgão de proteção ao índio em Boa Vista/RR, a indicar que tal
violência ocorreu devido à relação interétnica de integração que se
desenvolveu, de forma acelerada e sem planejamento, principalmente nas décadas
de 80 e 90, fundamentalmente com os contatos com os garimpeiros que exploravam
os minérios, com a população dos povoados que surgiram e com os soldados que
serviam nos pelotões, todos situados em território Ianomâmi, uma vez que a
violência sexual contra suas crianças, como já afirmado, não integrava a
cultura desses índios.
Este caso é um exemplo de que a preservação dos índios em redomas, para que se
mantenham distantes de contatos humanos, não passa de uma tentativa de fazer
parar o tempo, como se isso fosse possível, em territórios cujas dimensões e
natureza tornam impossível um policiamento protetor.
A proposta de segregação é um equívoco. O mundo real tem demonstrado a
impossibilidade do isolamento dos índios. O resultado do contato clandestino
destes com ações do que há de pior na sociedade contemporânea tem sido cruel e
perverso para sua subsistência.
Para o pesquisador Bruce Albert, especialista em Ianomâmi, esta comunidade, em
nome dos direitos humanos universais, deve ter estes direitos respeitados como
também observá-los. Sustenta que não podemos defender os Yanomami em nome de
direitos humanos universais e, ao mesmo tempo, eximi-los da responsabilidade de
observar tais direitos. Não podemos sustentar um equivalente ético do paradoxo
de Zenon de Eléia, que, enquanto caminhava, negava a existência do movimento.
E arremata que se assim fosse, estaríamos diante de um relativismo cultural
radical (“diferencialismo”) ou, pior ainda, num uso oportunista e casuístico do
universalismo jurídico, o que seria capaz de criar situações interétnicas
insustentáveis.
O Estado brasileiro tem implementado políticas e programas de assistência aos
índios sem levar em consideração o conhecimento disponível sobre estas
populações e mesmo à opinião destes grupos, em verdadeiro desrespeito a sua
autodeterminação. Preconceito, desinformação e intolerância têm, assim, cercado
as comunidades indígenas no Brasil, fomentando a discriminação e segregação.
Disto podemos concluir que é preciso intervir, através do repasse de
informações sobre os danos as crianças índias vítimas de abuso sexual, para que
se possa interromper a sua absorção pela sociedade indígena, originada no
contato com as ditas civilizações não-índias, ou mesmo possa mudar a cultura,
tradição e prática desta violência, onde for aceita.
Não seria inviável tal controle, desde que as informações fossem introduzidas
em acordo com as características culturais e situacionais, sobretudo em
consonância com as expectativas da comunidade indígena. Evidentemente, isto a
exigir um planejamento didático de informações a serem repassadas ao grupo
indígena.
Segundo a profª. Dominique Tilkin Gallois esta forma de atuação implica,
aparentemente, numa imersão no mundo dos “brancos”, na medida em que promove a
adaptação e a instrumentalização dos índios com técnicas e saberes novos.
Em função disto, tal orientação confronta-se habitualmente com os ideários
preservacionistas, cujos critérios de ‘respeito’ absoluto à cultura, ao nosso
sentir, não só controlam, mas também isolam os grupos indígenas do conhecimento
da realidade diversificada do mundo de fora, em verdadeiro prejuízo para
garantia da sua própria autonomia e existência.
Torna-se importante para a comunidade indígena que esta integração ocorra
mediante o acesso ao diálogo com múltiplos agentes da sociedade, bem como
conhecimento de diversas situações, que favoreçam a reflexão sobre sua posição
no jogo de poder das relações interétnicas.
A partir disso, podem ser encorajados a debater entre si o abuso de crianças
índias e de suas mulheres e a encontrar maneiras adequadas de se apropriar socialmente
do princípio dos direitos humanos universais.
Assim, mediante o repasse eficaz de informações sobre abuso sexual e seus
efeitos danosos contra crianças índias ocorrido em outros povos indígenas e no
próprio segmento da sociedade nacional, estaríamos promovendo a reflexão
pretendida.
Independentemente da cultura, da sociedade e da comunidade ou do grupo étnico
em que se insira a infância, esta deve ser reconhecida como um valor universal
de que as crianças enquanto pessoas em desenvolvimento necessitam de proteção e
cuidados especiais e são, enquanto seres políticos, sujeitos de direitos,
cidadãos de primeira classe. Este tema foi devidamente abordado no ensaio
publicado nesta coluna do dia 05.12.2011, sob o título “a criança índia e a
infância cidadã”.
A infância não é uma natureza, mas é uma condição concreta de existência, em
qualquer parte do mundo. Isto significa que em todo o planeta Terra é preciso –
partindo do sentimento e da idéia de infância, construir a cultura da infância
e de que a infância cidadã pode ser uma das manifestações.
Mauro Campello *
* Desembargador, professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade
Estácio/Atual da Amazônia - maurocampello@tjrr.jus.br