Tornam-se comuns casos de crianças adotadas
e, depois, devolvidas. E a Justiça não sabe como lidar com esse problema
Crianças adotivas não têm um passado feliz. Vão morar com famílias
substitutas, em geral, porque viveram tragédias pessoais – foram abandonadas,
vítimas de maus-tratos ou da miséria ou porque os pais biológicos morreram.
Muitas têm a sorte de encontrar lares afetivos e formar laços sólidos. Uma
parcela dessas crianças, porém, passa por outras experiências avassaladoras: o
segundo, o terceiro abandono. São “devolvidas” à Justiça pelos pais adotivos ou
guardiões e acabam em abrigos. Embora não exista um levantamento nacional,
estatísticas regionais revelam que essa questão é grave e não deve ser
desprezada. Das 35 crianças e adolescentes disponíveis para adoção na
Associação Maria Helen Drexel, na zona sul de São Paulo, 11% já passaram por
esse drama. Em apenas uma das varas da infância da cidade do Rio de Janeiro,
ocorreram oito devoluções no primeiro semestre deste ano. Três de cada dez
crianças e adolescentes que estão em abrigos de Santa Catarina foram devolvidos
ao menos uma vez.
Devoluções ocorrem
em três situações. Durante o estágio de convivência, em que a adoção definitiva
ainda não foi efetivada, depois da adoção formalizada ou quando a família tem a
guarda da criança. “Muitas devoluções poderiam ser evitadas. Mas o Judiciário
brasileiro não tem estrutura para acompanhar esses casos como deveria”, afirma
Mery-Ann Furtado e Silva, secretária-executiva da Comissão Estadual Judiciária
de Adoção (Ceja) de Santa Catarina. Ela avalia que um dos principais problemas
é que há pessoas que sonham com o “filho ideal” e, quando confrontadas com os
desafios de educar uma “criança real”, não dão conta de lidar com
“imperfeições” que, em filhos biológicos, seriam toleradas. “Estamos
engatinhando no processo de preparação dessas famílias”, diz Mery-Ann.
“Principalmente quando a criança é adotada mais velha, porque ela traz consigo
componentes importantes que devem ser trabalhados.”
DRAMA
11% das crianças disponíveis para adoção na Associação Maria Helen
Drexel já foram devolvidas
Recentemente, a Justiça catarinense não aceitou que um casal
devolvesse apenas um dos filhos adotivos – um garoto de 13 anos – e determinou
a destituição do pátrio poder também sobre a irmã biológica dele – uma menina
de 10 – porque considerou que ambos sofreram abuso emocional. Marcelo* e Tainá*
foram adotados em 2004, por integrantes da classe média alta da região de
Blumenau. Por uma professora universitária e um estrangeiro. Um homem ausente
que, segundo relatos, não se comunica bem em português e vive às voltas com
estudos no Exterior. “Eu me apaixonei pela Tainá. Deus a fez para mim. Ela quer
ser minha e eu dela”, declarou a mãe adotiva a profissionais do Judiciário
local. Como os magistrados raramente separam irmãos, o casal decidiu adotar
Marcelo para não perder Tainá. Ele tinha 6 anos. Ela, 3. No abrigo onde morava,
Marcelo era descrito como “muito normal” e “carinhoso”. Não havia nos registros
algo que o apontasse como garoto-problema. Os irmãos seguiram para a casa da
família e se juntaram a Maurício*, filho biológico do casal.
As rusgas
com Marcelo começaram logo no primeiro dia. De acordo com a mãe adotiva, o
menino levou uma surra porque deu um chute no pai. Diversas pessoas que
conviveram com eles contaram, em depoimento, que Marcelo nunca foi aceito como
filho e não houve grande esforço do casal para inseri-lo no contexto familiar.
Marcelo sempre se sentiu indesejado. Tinha de ir a pé para a escola, num bairro
vizinho. Tainá e o filho biológico frequentavam outros colégios e eram levados
de carro. Se Marcelo fizesse alguma traquinagem, era punido severamente. Tainá
e Maurício, muitas vezes, nem sequer eram repreendidos. Se Marcelo fizesse xixi
na cama, tinha de lavar os lençóis. Tainá, não. A mãe adotiva chegou a dizer
que no início sentia um carinho pelo menino. Mas, depois, passou a odiá-lo.
Quando um oficial de justiça foi buscar as crianças para levá-las para um
abrigo, a mulher se desesperou ao ser informada de que a menina também iria
embora. Aos gritos, disse: “Isso é coisa do Marcelo, ele está se fingindo de
doente para a juíza ficar com pena e levar a Tainá também. Ele não suporta ver
que a Tainá é amada. O Marcelo é psicopata, precisa de um psiquiatra.”
DOR
Raquel foi devolvida depois de 6 anos. A psicóloga Helena diz que
a menina entrou em depressão
Na ação de destituição do poder familiar, o desembargador Joel
Dias Figueira Júnior escreveu que “a desprezível prática da ‘devolução’ de
crianças começa a assumir contornos de normalidade”. E que observa “a tomada de
vulto, em todo o território nacional, de situações idênticas ou semelhantes” à
vivida por Marcelo e Tainá. No Rio de Janeiro, um levantamento feito pelo
Serviço Social e de Psicologia da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da
Comarca da Capital mostra que esse problema vem crescendo. Entre 2005 e 2010,
20 crianças foram devolvidas àquela vara. E, apenas no primeiro semestre deste
ano, ocorreram oito devoluções. “As crianças são trazidas como objetos”,
lamenta a psicóloga Patrícia Glycerio R. Pinho. “Quando o vínculo de filiação
não se dá, pequenas dificuldades se tornam grandes. Às vezes, os pais adotivos
não percebem que estão sendo testados e acham que é ingratidão da criança.
Imperfeições num filho adotivo são mais difíceis de ser acolhidas porque os
pais pensam: ‘isso não pertence a mim porque não o gerei’.”
Patrícia
já viu e ouviu uma porção de absurdos. Certo dia, uma mãe adotiva, de bom nível
sociocultural, ficou indignada porque a filha andava vomitando. “Estou dando
salmão e ela nunca tinha comido”, reclamou. Outra, depois de um ano e meio,
devolveu três irmãos ao conseguir engravidar. As crianças já tinham até trocado
de nome. Foi um baque. “Geralmente, os pais vêm com uma posição fechada”, diz a
psicóloga Patrícia. “O que é pior: a criança ficar numa casa onde já não tem
espaço ou ir para um abrigo e tentarmos recolocá-la numa outra família?” Lidia
Levy, psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, uma das autoras do trabalho “Família é muito sofrimento: um estudo de
casos de devolução de crianças”, relata que está havendo uma mudança no perfil
dos adotados. “Praticamente inexistem bebês disponíveis. Por isso, há quem não
queira esperar na fila e acaba aceitando crianças mais velhas”, afirma Lidia.
“Mas, se essa mudança não for bem trabalhada, pode não dar certo.”
"O Judiciário brasileiro não tem
estrutura para acompanhar esses casos como deveria"
Mery-Ann Furtado e Silva,
secretária-executiva da Ceja-SC
A pequena Raquel*, 10 anos, ficou seis anos sob a guarda da
madrinha – a quem chamava de mãe – depois que a mãe biológica morreu. Durante
muito tempo, a convivência foi pacífica. Mas, nos últimos meses, as desavenças
com o filho biológico ficaram frequentes. “Eu e meu irmão brigávamos bastante,
um irritava o outro, e o esposo da minha madrinha não me quis mais”, lembra Raquel.
A menina vive na Associação Maria Helen Drexel e diz que quando sair do abrigo
vai procurar pela guardiã. “A Raquel tem um amor imenso por ela”, analisa
Helena Zgierski, psicóloga da associação. “Apresentou depressão e um quadro
psiquiátrico complicado quando chegou aqui. Passou dias e noites sem dormir nem
comer. Só chorando. Crianças devolvidas se culpam e acham que não são boas o
suficiente.” Helena afirma que pessoas que procuram uma criança com a intenção
de fazer caridade ou para salvar um casamento, por exemplo, têm enormes chances
de fracassar. “O amor tem de ser incondicional, porque a gente não sabe o que a
criança traz registrado”, avalia.
"Crianças devolvidas se culpam e acham que não são boas o
suficiente"
Helena Zgierski, psicóloga
da Associação Maria Helen Drexel
Em todas as histórias de devolução que Helena conhece, havia um
filho biológico na família. “Existe uma disputa por amor e espaço. É um outro
ser que está chegando. A criança que vai ganhar um irmão também tem de
participar desse processo”, diz ela. Foi o que aconteceu com Paula*, 8 anos, e
Lauro*, 4. Depois de 11 meses de convivência com um casal de São Paulo, os dois
foram devolvidos e estão num abrigo. Paula e o filho biológico do casal,
Gustavo*, viviam às turras. Além das brigas constantes, ela e Lauro têm um
histórico difícil. Moravam na rua com a mãe biológica e passaram por situações
de privação e maus-tratos. “Eu bagunçava muito onde fui adotada. Ficava
xingando todo mundo. Batia nas pessoas quando ficava com raiva. Desobedecia
minha mãe”, admite Paula. “Meu pai não aguentava meu choro e minha bagunça e me
batia.” A menina se culpa pela devolução e pela tristeza do irmão pequeno.
Lauro ainda pergunta pelo pai adotivo: “Por que ele não vem me buscar?”