É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Artigo 227 da
Constituição)
Um
cenário de descaso aos direitos previstos na legislação é protagonizado por
crianças e adolescentes que vivem nas ruas de Goiânia. Segundo dados do último
Censo Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua (realizado em
junho de 2010, em 75 cidades do País com mais de 300 mil habitantes) a capital
de Goiás possui 1.206 crianças e adolescentes nesta condição. Para
vê-los no dia a dia não é necessário qualquer esforço. Basta circular nas
regiões de feiras, viadutos, semáforos, terminais de ônibus e das duas
rodoviárias municipais – nos setores Aeroviário e Norte Ferroviário.
A expressão “situação de rua” inclui tanto os moradores definitivos quanto
aqueles a um passo de se incluírem na marginalidade absoluta. São meninos e
meninas que ficam nas vias públicas durante todo o dia, pedindo dinheiro e
favores, realizando pequenos bicos, furtos, usando drogas, prostituindo-se, mas
ainda sem romper o vínculo familiar, pois vez ou outra ainda dormem em casa,
explica a socióloga Luiza Monteiro, responsável por coordenar a pesquisa na
capital.
Enquanto
o problema se expande visivelmente, sequer a abrangência do desafio é conhecida
pela Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas). Sem fornecer um banco
de dados atualizado, o órgão computa em 46 o número de crianças e adolescentes
pelas ruas de Goiânia, sendo estes atendidos no mês de agosto. Esse número
representa uma queda em relação a julho, quando, segundo divulgado, houve 62
abordagens. “Eles migram de uma região para outra e, por isso, não é possível
ter um número fixo. Muitos vêm de outras cidades e, depois, vão embora”, disse
a titular da pasta, Célia Valadão. Ela não soube informar, no entanto, a
quantidade de recursos disponíveis para a secretaria desenvolver o trabalho nas
ruas da cidade.
O descrédito na assistência social do setor se demonstra pela falta de
políticas públicas que visem à solução do problema. Desde 2010, a prefeitura cortou
aproximadamente R$ 10 milhões em investimentos anuais,
que eram destinados ao atendimento à população menor de 18 anos em situação de
risco e violência, conforme dados da Secretaria Municipal de Planejamento.
Os números de atendimentos da Semas não refletem a dimensão do problema, segundo
especialistas entrevistados pelo jornal A Redação. Além de apontar um contingente bem maior de crianças e
adolescentes vivendo nas ruas, eles ressaltam que a falta de investimentos
atinge a contratação de pessoal necessário para fazer o levantamento, prejudicando
assim a metodologia de trabalho. Atualmente, apenas nove pessoas, divididas em
três equipes de educadores sociais, são responsáveis por abordar, dia e noite,
o grupo alvo em questão, além de adultos, em situação de risco. A secretaria
não explicou os critérios usados para definir o número de equipes nem a seleção
dos integrantes, responsáveis por atender uma cidade de 1.302 milhão de
habitantes (Censo 2010).
A discrepância dos números fornecidos pela Semas é diagnosticada pelo último
Censo Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua. O levantamento
mostra em Goiânia, na época, um total de 163 crianças e adolescentes morando
definitivamente nas ruas.
“É importante fazer essa distinção, porque nem todos que estão na rua deixaram
suas casas ainda. Entretanto, podem se tornar moradores de rua, de acordo que o
tempo longe de suas famílias aumentar e o trabalho ou o ato de pedir, por
exemplo, ocupar mais o seu cotidiano. A partir daí, conhecem outras crianças e
adolescentes e param de dormir em casa”, ressalta Luiza, que também é
coordenadora do Movimento de Meninos e Meninas de Rua em Goiás (MMMR-GO).
De acordo com a socióloga, o estudo foi desenvolvido, no Estado, pelo Instituto
Dom Fernando, vinculado à Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás.
Somente em Goiânia, 34 pesquisadores trabalharam para identificar a dimensão do
problema. “Prostituição, trabalho infantil, drogas e conflitos familiares estão
entre os principais fatores que fazem crianças e adolescentes saírem de casa”,
pontua Luiza Monteiro.
Caos e improviso
Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA), o psicólogo Eduardo Mota também questiona os números apresentados pela
Semas. Segundo ele, a secretaria não realiza um trabalho de prevenção
suficiente para coibir o problema nem tem metodologia de trabalho adequada.
“Goiânia vive um caos na área da assistência social. O município está
desleixado nesse campo, que sofre com a retirada tanto de profissionais quanto
de recursos”, critica.
O colapso na área faz os profissionais recorrerem ao improviso para tentar
suprir a demanda de trabalho. A reportagem do jornal A Redação constatou que, no CMDCA, além de equipamentos
eletrônicos estragados, faltam materiais básicos, como papel higiênico e copos
descartáveis. “Já fizemos as solicitações para a Semas, mas, até hoje, não
houve resposta”, lamenta Eduardo Mota.
A precariedade também se estende aos seis conselhos tutelares de Goiânia. “Cada
unidade tem cinco conselheiros, mas apenas um carro para atender à sua região.
Houve casos de o trabalho ficar travado por falta de combustível”, afirma o
psicólogo. Entretanto, para a secretária titular da pasta, não há necessidade
de aumentar a frota. “Os conselhos têm carros para trabalhar e temos muitos
outros problemas para resolver. Não podemos prestar atendimento só para
crianças e adolescentes”, alega Célia Valadão.
A crise também afetou os trabalhos no Complexo 24 Horas, a única casa de
passagem destinada a acolher, provisoriamente, a população de rua menor de 18
anos. Em janeiro deste ano, os profissionais da unidade promoveram uma
manifestação em frente à unidade, no Setor Universitário, reivindicando
melhorias das condições de trabalho. Eles entregaram um documento, com 32
assinaturas, à Semas e ao Ministério Público de Goiás (MP-GO), pelo qual
denunciaram a falta de equipe multiprofissional, espaço e material pedagógico
para desenvolver atividades com o público atendido.
Após quase 10 meses da denúncia, os profissionais ainda permanecem
insatisfeitos, principalmente porque, conforme afirmaram, o complexo não possui
profissionais suficientes para atender à demanda. “Muitos educadores sociais
começam a trabalhar e desistem porque não se adaptam à função, por falta de
recursos ou de preparo”, pontua uma assistente social que trabalha na unidade.
“Quem vem aqui encontra tudo quieto mas, na verdade, é apenas um retrato da
desarticulação dos trabalhos. A rua está lotada de crianças que necessitam de
atendimento”, acrescenta a funcionária, que pediu para não ter a identidade
divulgada.
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional (CAO) da Infância e Juventude, do
MP-GO, a promotora de Justiça Liana Antunes Vieira Tormin entende que o
município deve investir em medidas protetivas. “Nem sempre é correto dizer que
crianças e adolescentes têm direito de permanecer na rua, porque ainda não
possuem autonomia para fazer suas escolhas. O município tem de prestar todo
atendimento necessário para que os olhos deles sejam abertos para as
oportunidades”, afirma Liana, ressaltando que essa responsabilidade também é da
família e da sociedade.
Políticas deturpadas
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil
em Goiás (OAB-GO), Alexandre Prudente Marques defende investimentos que possam
atingir a raiz do problema, que se ramifica. “As políticas de Estado são feitas
de forma deturpada. Os gestores aumentam recursos para a segurança pública,
revelando que tratam a questão sob a lógica da violência e repressão.
Vivemos em situação de barbárie”, alerta o advogado.
Também vinculada à OAB-GO, mas na presidência da Comissão de Direitos Sociais e
Acesso à Justiça, a advogada Diane Jayme salienta a falta de atenção e projetos
sociais que abarquem questões domésticas, como violência e problemas
financeiros, impulsionando a busca de crianças e adolescentes pela “liberdade”
da rua. “Se não houver políticas públicas de prevenção às famílias em crise, as
crianças terão seus caminhos desvirtuados e se perderão no abandono”,
ressaltou a advogada. “A saída é investimento pontual, com mapeamento de focos
carentes, forn
Cleomar
Almeida
fotos: Fábio Lima
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